Você conhece esta cena: lá está ele, pendurado no vazio. Afundando, os braços estendidos, tentando desesperadamente agarrar o ar. O filme de horror satírico de Jordan Peele, “Corra!”, nos apresentou ao “lugar afundado”, uma espécie de purgatório onde o personagem de Daniel Kaluuya é aprisionado por liberais brancos… que roubam corpos. Uma solução tão transcendental e já tão clássica quanto a sequência de sonho desenhada por Salvador Dalí em “Quando fala o coração”, de Alfred Hitchcock. Definitivamente esta cena do filme do Jordan Peele foi o que solidificou o Afro-surrealismo no mainstream.
Nós podemos dizer, sem dúvida, que “Corra!”, do Jordan Peele simbolizou o renascimento de um gênero no qual a estranheza e a negritude não apenas coexistem, mas são impossíveis de separar. E nos últimos anos, nós tivemos também “Atlanta”, uma série que o seu criador, Donald Glover, orgulhosamente chamou de “Twin Peaks” negro.
Mas é fato que nós tivemos também uma série de diretores, incluindo Kahlil Joseph, Arthur Jafa e Jenn Nkiru, que deram um toque alucinatório no terreno da música, trazendo soluções visuais para a obra de artistas como Kendrick Lamar, Flying Lotus, Kamasi Washington e Beyoncé. Vamos ver, por exemplo, o vídeo de Kahlil Joseph para a música “Until the Quiet Comes”, que podemos traduzir pra “Até que o silêncio chegue”, do Flying Lotus: ele reimagina Watts, que é um bairro no sul de Los Angeles, nos Estados Unidos, como um playground fantasmagórico onde o corpo de um homem negro assassinado dança por entre as casas populares, mesmo perfurado por balas. Já o projeto de instalação audiovisual de Arthur Jafa, chamado “Love Is the Message, the Message Is Death”, ou seja “O amor é a mensagem, a mensagem é a morte”, é uma colagem de imagens, onde podemos ver atletas e artistas como LeBron James e Drake, intercalados com imagens de policiais espancando negros e a agitação nas manifestações pelos direitos civis, enquanto um sol psicodélico gigante queima ao fundo, aparecendo e desaparecendo como um presságio de um destino iminente.
E temos um programa que, infelizmente, ninguém viu aqui no Brasil, mas está à sua disposição no Max, que é o quase inclassifícável “Random Acts of Flyness”, obra do roteirista e diretor Terence Nance, que consegue satirizar a violência policial, a síndrome do salvador branco e o racismo cotidiano em um estilo que foi descrito pelo New York Times como “caleidoscópico, quase incategorizável”. Mas vamos trazer mais um pra esta lista: o filme “Sorry to Bother You”, ou “Desculpe te incomodar”, do Boots Riley, que usa o afro surrealismo para comentar sobre raça, sexualidade e capitalismo.
Mas por que o renascimento do Afro-surrealismo está acontecendo agora? Será que escapar para o estranho e fantástico é simplesmente uma resposta natural a viver em um mundo limitado pelo racismo estrutural?
Os primóridos do Afro-surrealismo
Segundo Terri Francis, diretora do Arquivo de Filmes Negros da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, não é de se surpreender que nosso cenário cultural esteja se tornando Afro-surreal em um momento em que, mais uma vez, a sociedade está lidando com violência racial, preconceito e desigualdade em potências absurdas. E, no cenário brasileiro, especificamente, eu adiciono mais um fator importante: a situação em que os negros são uma maioria numérica que é minorizada socialmente. A Terri Francis diz achar que, na verdade, o trabalho destes realizadores negros é muito realista ao representar o absurdo da vida negra. Na América, segundo ela, os ideais estão todos lá e você está ciente do que DEVERIA estar acontecendo… mas essa não é a realidade. Porque o que deveria não está acontecendo. E a gente aqui sabe muito bem sobre isso, né?
Mas está longe de ser a primeira vez que artistas negros recorrem ao estranho e onírico para explicar e examinar as suas circunstâncias. O surrealismo, inicialmente, incluía artistas africanos e afro-caribenhos; André Breton, escritor francês e teórico do surrealismo, era muito próximo de Aimé Césaire, nascido na Martinica e um dos mais importantes poetas surrealistas do mundo. O sentido de surrealismo naquele momento não era segregado. Ao contrário de hoje, quando muitos trabalhos que celebramos como sendo surrealistas se inspiram na arte africana e na música afro-americana.
O Aimé Césaire fez parte do movimento chamado Négritude na França, nos anos 30, que era um coletivo de artistas africanos das antigas colônias francesas que criaram uma nova visão da África moderna a partir da cultura francesa, a partir do pensamento pan-africano e do surrealismo. E este movimento surge uma década depois do Renascimento do Harlem. É fato que o movimento Negritude na França produziu talvez o mais importante Afro-surrealista inicial: um cara chamado Léopold Sédar Senghor, um poeta e socialista senegalês que se tornaria o primeiro presidente do país, o Senegal, em 1960. Ele acreditava que a arte poderia impulsionar a economia de seu país em um mundo pós-colonial. Então imagina esta realidade: teve um momento em que o seu governo investia 25% do orçamento total no seu ministério da cultura. Impressionante, né?
Ao mesmo tempo, o escritor negro norte-americano Henry Dumas estava produzindo trabalhos que o levariam a ser chamado de “expressionista afro-surreal” pelo intelectual americano Amiri Baraka, que cunhou este termo. Henry Dumas nasceu no Arkansas em 1934, e após um período na Força Aérea dos EUA, ele iniciou uma carreira de escritor que misturaria o bizarro com ideias de identidade e de poder negro. Através de contos, poesia e projetos mais experimentais, ele usou o surrealismo para questionar as lutas sociais dos afro-americanos e a atitude negligente da classe dominante branca. No seu conto chamado “Riot or Revolt”, ele escreveu: “Quando um garoto negro é baleado e morto por policiais que não verificam a situação antes de sacar suas armas, as pessoas ficam com raiva. É uma simples lei da natureza”. E em uma trágica reviravolta irônica, Henry Dumas foi baleado e morto por um policial de trânsito em uma estação de metrô da cidade de Nova York em 1968.
Léopold Sédar Senghor, poeta e primeiro presidente do Senegal, em 1960: acreditava que a arte poderia impulsionar a economia do país em um mundo pós-colonial.
O Amiri Baraka escreveu que o trabalho de Dumas era composto de “contos de moralidade” mágicos que eram “construídos com estranheza”. E alguns de seus trabalhos, como a história de um grupo de fãs de jazz brancos que exigem entrada em um clube de jazz negro, mas morrem porque seus corpos não conseguem lidar fisicamente com a potência da música incrível dos negros, poderiam facilmente ter saído da mente do Boots Riley, diretor do “Desculpe Te Incomodar” e também da série “Sou de virgem”, ou mesmo do Terrence Nance, criador do “Random Acts of Flyness”.
Afro-surrealismo ou experimentalismo?
Podemos concluir que é a frustração com o racismo cotidiano o motivo pelo qual uma nova geração de cineastas e artistas negros está recorrendo ao surrealismo novamente?
A única maneira de explicar a realidade da vida dos negros no mundo é através do extraordinário?
A série da HBO “Random Acts of Flyness” usa de todos os recursos possíveis do afro-surrealismo para evidenciar o cotidiano. O programa tem esquetes que examinam o absurdo das relações raciais na América. Em um esquete, por exemplo, o personagem negro contrata um amigo branco que testemunha por ele sempre que o negro é parado por um policial. Um outro esquete, chado, “White Angel”, foca em um diretor narcisista que usa o filho adotado de um amigo como espécie de musa inspiradora para um filme grotesco de salvador branco, brincando com ideias comuns em Hollywood, como a exploração do sofrimento negro e a sinalização da virtude daqueles que “salvam’ os negros.
Vamos lembrar da segunda temporada de “Atlanta”, no episódio “Woods”, quando vemos o Paper Boi fugindo para uma floresta depois de ser assaltado. Lá, o tempo e a realidade mudam enquanto ele é perseguido por um viciado místico que o provoca por não fazer mais da sua vida. E assim como a visão distorcida do David Lynch sobre a América provinciana, em “Twin Peaks”, revelou a escuridão que persistia por baixo de tudo, o Afro-surrealismo de produções como estas, expressa a completa bizarrice de ter que lidar com uma sociedade racista.
O Ralph Ellison, cujo romance “Homem Invisível”, junto com o romance “Amada”, da Toni Morrison, é talvez a obra Afro-surrealista mais famosa da literatura, lançou as bases fantásticas para que pudéssemos ler, hoje, obras como “O vendido”, vencedor do Man Booker Prize, de Paul Beatty, e para o vencedor do Pulitzer “The Underground Railroad”, do Colston Whitehead.
E o Afro-surrealismo daqui pra frente?
O fato é que os artistas de hoje às vezes relutam em abraçar completamente a etiqueta surrealista. A Stefani Robinson, uma das principais roteiristas de “Atlanta”, falou: “Certamente não abordamos os episódios e dizemos: ‘Ei pessoal, vamos garantir que este roteiro seja surreal!'”. Ela fala sobre o fato de que os criadores são um grupo muito específico de indivíduos que provavelmente são mais atraídos pelo incomum, pelo estranho e pelo além-mundo. E as soluções que trazem elementos do afro-surrealismo acabam sendo apenas consequeência de gosto pessoal, não uma estratégia verbalizada. Embora eu, pessoalmente, duvide disso.
Um dos princípios fundamentais do Afro-surrealismo é a sua natureza introspectiva, na qual metáforas como o “lugar afundado”, do filme do Jordan Peele, são usadas para explorar algumas verdades dolorosas. É uma jornada que é interior. Ou seja, se trata de imaginar como funciona o seu mundo interior e permanecer nesse lugar para lidar com o seu cotidiano. E nesse sentido, nós podemos incluir trabalhos como “Chewing Gum”, da Michaela Coel, e a série “Insecure”, da Issa Rae, que exploram o mundo interior raramente explorado, pelo menos na cultura mainstream, que é o das mulheres negras.
E é natural que artistas cada vez mais jovens vejam o potencial extremamente libertador do gênero afro-surrealista. Por que todo mundo tava acostumado a ver as coisas como ‘reais’ na cultura afro-americana. Mas olha pra Funkadelic, pra soluções como as de George Clinton, pra perceber que as pessoas negras sempre usaram a imaginação. E, em tempos de hiper-realismo, talvez os jovens tenham ficado chocados porque na cultura popular parecia não haver uma via para usar sua imaginação pra realmente propor novas possibilidades e se imaginar em outros lugares e situações, principalmente naquelas onde não se imaginam os negros.
Mas o fato é que agora o afro-surrealismo está se espalhando. A “New Negress Film Society”, por exemplo, é um coletivo de cineastas que usam elementos oníricos e que apoiam diretores e artistas negros. Vários jovens iretores da diáspora africana, vêm experimentando o surreal em suas obras. A nigeriana-britânica Jenn Nkiru, por exemplo, trouxe estes elementos para o clipe de “Apeshit”, da Beyoncé e Jay-Z, que intercala imagens de mestres antigos do Louvre com os elementos africanos em torno do casal mais poderoso da América negra. Definitivamente, o Afro-surrealismo já está enraizado na sociedadecomo forma de arte e de confronto com o pré-estabelecido.