A beleza de reinvindicar a existência negra

Confira a entrevista exclusiva de Tássio Santos sobre seu livro "Tem Minha Cor? Quando maquiar se torna um ato político", que aborda inclusão e diversidade na indústria cosmética

A beleza de reinvindicar a existência negra Criador de conteúdo, jornalista, escritor e ativista Tássio Santos, autor de "Tem Minha Cor? Quando maquiar se torna um ato político"

No livro A História Social da Beleza Negra, a escritora Giovana Xavier nos conta que “a cosmética negra teve papel importante nos debates sobre reconstrução da feminilidade negra e também na criação de um sistema colorista que criava hierarquias de beleza e oportunidades dentro da comunidade negra. Oportunidades estas baseadas na aparência clara ou escura, no cabelo crespo ou liso, nas feições finas ou grossas, dentro de um modelo de beleza cívica criado e sustentado como um caminho alternativo de luta contra o racismo”.

A estética sempre foi um ícone de existência negra. E a negação da beleza existente na negritude alude ao período da escravidão. Cabelo, pele escura, nariz adunco, lábios grossos: tudo é sinal que destaca a negritude. A identidade negra é construída, ou reconstruída, todos os dias, como uma forma de autoafirmação.

Há várias formas de se (re)construir essa identidade, e uma delas é pelo conhecimento, cuidado e orgulho do negro por suas características: do seu cabelo à aceitação e carinho por sua pele negra, como símbolos de força e dos traços negróides como orgulho pela história e antepassados.

Redescoberta

Hoje nos vivenciamos uma redescoberta da beleza negra. E esta “redescoberta” é muito movimentada por identificação através de ícones midiáticos, artistas e influenciadores negros que se tornaram mais acessíveis na medida em que seus discursos passaram a não ser cerceados por veículos e seus interesses. E são estas personalidades — somadas à maior informação do público consumidor que, hoje, pode acessar fontes várias com muito mais facilidade — que reverberam o orgulho por sua beleza negra, nos mais diversos canais, e a necessidade de cuidados para mantê-la.

Mas esta “redescoberta” é também movimentada pela publicidade e por marcas que, motivadas por necessidades financeiras, de branding e marketing — e umas poucas, por propósito — “percebem” o público negro e seu alto potencial de consumo e, obviamente, grande necessidade de produtos e soluções conectadas às suas peculiaridades.

Porém, há cerca de 12 anos, um profissional hoje felizmente muito reconhecido, já estava imbuído deste objetivo: transformar o mercado de beleza e da maquiagem em um lugar melhor, principalmente para a comunidade negra. Tássio Santos, maquiador profissional pelo MakeUp Atelier Paris, da França, e jornalista, criou a plataforma Herdeira da Beleza pela extrema consciência da falta de representatividade nesta área e com o desejo de criar uma representação positiva da negritude.

Como se motivado por esta clássica frase da escritora Toni Morrison, “Se há um livro que você quer ler, mas não foi escrito ainda, então você deve escrevê-lo”, Tássio resolveu escrever sobre o que ele gostaria de ler e criou a marca, perfil nas redes sociais, plataforma Herdeira da Beleza que acabou ajudando a mudar o rumo da indústria cosmética.

Seu trabalho deu resultado. E muito: com quase 1 milhão de seguidores, Tássio foi reconhecido pelo Google como uma das vozes mais importantes dentro do YouTube, inclusive tendo seu canal nomeado em 2020 pelo Meio & Mensagem como o lugar para falar sobremaquiagem para pele negra. Em 2021, recebeu o prêmio Builders, do site de marketing de influência YouPIX, como um dos nomes que transformam a sociedade.

Tássio Santos
Tássio Santos, criador da plataforma Herdeira da Beleza, lança livro que reafirma seu compromisso com a representividade negra no mercado da beleza

E depois de mais de uma década criando conteúdo, obtendo o reconhecimento e autoridade que o levou a prestar consultorias para gigantes do setor, e revolucionando o mercado da beleza, Tássio Santos reafirma seu compromisso com a comunidade negra ao lançar seu primeiro livro.

“Tem Minha Cor? Quando maquiar se torna um ato político” (Editora Telha) aposta na maquiagem e skincare como caminhos para construir novas noções de cidadania. O baiano Tássio Santos acredita que lutar por uma cartela de cores que represente a população brasileira é uma forma de reivindicar a existência principalmente das mulheres retintas. E as empresas têm um papel crucial nessa luta.

Eu pesquiso a falta de tons no mercado nacional sob essa ótica: uma estratégia de perpetuação do racismo - já que a construção do poder passa também pela estética.

Segundo Tássio, seu livro é uma grande análise da sociedade através da maquiagem. “O portfólio das marcas dizem mais sobre história do Brasil, padrões estéticos e negritude do que se imagina. A nossa restrição a este espaço é uma forma de legitimar estruturas violentas de exclusão. E eu pesquiso a falta de tons no mercado nacional sob essa ótica: uma estratégia de perpetuação do racismo — já que a construção do poder passa também pela estética. Ao exigir uma base para minha pele, por exemplo, é uma forma de dizer que eu existo. Isso é o mínimo para uma indústria que sempre nos invisibilizou”, comenta o autor.

livro de Tássio Santos Tem Minha Cor?

Além de sua paixão pela maquiagem, Tássio também se dedica à promoção de uma dermatologia mais inclusiva. Atualmente, essa é sua principal causa, abordada em seu livro ao destacar a falta de conhecimento médico sobre pele negra, especialmente no que diz respeito à fotoproteção. Uma vez que cada tipo de pele reage de forma diferente à exposição solar, é importante compreender que a preocupação não se limita apenas ao aspecto esbranquiçado após a aplicação de protetor solar. A comunidade negra pode estar sujeita ao risco de que as formulações atuais não considerem suas necessidades específicas. A certeza desse cenário só virá com maior investimento e interesse em estudos voltados para fototipos mais escuros.

Confira a entrevista exclusiva que Tássio Santos concedeu à Casablack:

Tássio, sua trajetória como maquiador e influenciador digital tem sido inspiradora para muitas pessoas, especialmente para a comunidade negra. Como você descreveria sua jornada até aqui e quais foram os principais desafios que enfrentou ao longo do caminho? 

Muito disruptiva. Eu não cresci sonhando com o trabalho que tenho hoje – até porque não existia. Até mesmo quando se pensava em homens no mercado de beleza, era apenas arrumando outro alguém e sempre atrás das câmeras. Criar uma representação positiva da negritude estando maquiado é realmente uma batalha porque nem todo mundo está acostumado (ou quer se acostumar) com minha imagem. Esse é um dos meus maiores desafios, eu diria.

Sua plataforma nas redes sociais tem um foco muito forte na representatividade e na valorização da beleza negra. O que o motivou a criar conteúdo com esse propósito e como você vê o papel da sua plataforma na transformação do mercado de maquiagem? 

A falta de representatividade. Eu consumia muito conteúdo antes de criar o Herdeira da Beleza e decidi escrever sobre o que eu gostaria de ler. E se alguém tivesse me dito há 12 anos que isso ajudaria a mudar o rumo da indústria cosmética, eu não teria acreditado. É que a gente acabou criando uma demanda, principalmente de mulheres retintas.  #OTomMaisEscuro é prova disso! Conforme os vídeos foram ganhando tração, mais gente foi cobrando junto comigo por inclusão e diversidade na indústria cosmética. Se antes as marcas desenvolviam (quando desenvolviam) cores para alguém com no máximo meu tom de pele, por exemplo, agora elas consideram pessoas ainda mais escuras. Nem sempre elas fazem essas cores corretamente, mas aí basta me chamar que eu dou uma forcinha!

Com mais de 236 mil seguidores, o perfil no Instagram é outra grande plataforma do Herdeira da Beleza

Seu livro “Tem Minha Cor? Quando maquiar se torna um ato político” parece trazer uma abordagem única sobre maquiagem e skincare, conectando-os com questões de cidadania e identidade. Como surgiu a ideia para esse livro e qual mensagem você espera transmitir aos leitores? 

A ideia foi dos meus seguidores, acredita? Eu também sentia falta dessa abordagem racial na literatura de beleza, mas nunca teria considerado escrever um livro se eu não estivesse ao lado de pessoas que estimulassem isso em mim. E a mensagem do livro é uma só: apostar na maquiagem/skincare para reivindicar nossa existência e reconquistar nosso poder é uma forma de combater o racismo. 



Você recebeu reconhecimento de várias fontes, incluindo o Google e o prêmio Builders do YouPIX, por seu impacto na sociedade. Como você se sente ao ser reconhecido por seu trabalho e como isso influencia sua abordagem em relação à sua plataforma e ao seu trabalho como jornalista e maquiador? 

Eu me sinto no topo do mundo, fico todo besta! Já pensou ter uma bigtech indicando seu perfil como o melhor espaço para falar sobre maquiagem para pele negra? Isso me fez lembrar dos dias que eu me sentia “repetitivo” por precisar voltar em algumas questões que eu ingenuamente pensava que nós enquanto sociedade tínhamos avançado. Mas como o Brasil é gigante e tem sempre gente nova me descobrindo, eu já entendi que nem todo mundo está na mesma página – o que me faz encarar meu trabalho de maneira ainda mais séria.

No seu canal do YouTube e outras plataformas, você se consolidou sobre abordar questões específicas relacionadas à maquiagem para pele negra. Como você percebe a evolução desse diálogo ao longo dos anos e quais são os principais pontos que você gostaria de ver mais discutidos na indústria da beleza? 

Encontrar produtos para além da base e uma dermatologia mais inclusiva. Muita coisa avançou, mas a gente segue empacado nesses dois pontos. Hoje essa última é minha principal luta inclusive. Sabe-se pouco sobre pele negra, inclusive quando o assunto é fotoproteção. Eu falo muito sobre o desafio de encontrar um protetor solar que não deixe esbranquiçado, mas talvez a gente não precise apenas disso. Nem toda pele reage da mesma forma frente ao sol e corre o risco da gente estar deixando passar alguma especificidade que é só nossa. Então fica o pedido por mais investimento e disposição para dermatologistas estudarem pele negra.

Tássio Santos
Para Tássio Santos, diversificar o quadro de funcionários em toda a cadeia de produção é uma das principais mudanças necessárias para tornar o mercado de maquiagem mais inclusivo e acessível

Além de influenciador e maquiador, você também é jornalista. Como você vê a interseção entre a maquiagem e o jornalismo em seu trabalho e como essa perspectiva única influencia sua abordagem em relação aos temas que você cobre?

Eu cheguei a trabalhar em redação por um tempo e sei que apurar informação é uma coisa que nem todos os influenciadores fazem. Trazendo para o universo da maquiagem, eu sempre busquei entender melhor as dicas antes de compartilhá-las. Exemplo: até hoje é muito comum as pessoas usarem produtos não-convencionais na maquiagem, como lápis escolar para preencher sobrancelhas. Ou ainda seguir uma técnica sem refletir o que há por trás, como a de afinar o nariz. 

Com o crescimento de sua plataforma e o impacto que você tem na comunidade, você sente uma responsabilidade especial ao abordar determinados temas ou ao recomendar produtos? Como você equilibra a expressão criativa com essa responsabilidade? 

Eu testo muita coisa longe das câmeras! A gente não precisa compartilhar tudo que vive, até porque isso vai impactar sabe-se lá como na vida de alguém. Então um compromisso que eu tenho comigo é testar bem os produtos antes de recomendar e entender que assumir essa responsabilidade é perder alguns timings.

A indústria da beleza tem sido criticada por sua falta de diversidade e representatividade. Na sua opinião, quais são as principais mudanças que ainda precisam acontecer para tornar o mercado de maquiagem mais inclusivo e acessível a todos? 

São várias. Diversificar o quadro de funcionários em toda a cadeia de produção é uma delas. Você chega em uma reunião com o board da empresa e é praticamente todo mundo igual, poxa! É preciso diversidade no pensamento, na idade, na origem, no tom de pele… 

Existente desde 2014, só o canal do YouTube de Tássio Santos reúne mais de 484 mil inscritos

Como você lida com críticas e comentários negativos em suas redes sociais, especialmente quando se trata de questões sensíveis como representatividade e identidade racial? 

É bem raro eu receber, mas eu já tenho isso bem elaborado na minha cabeça. As pessoas só colocam pra fora o que tem dentro delas. Se eu cruzo com algum comentário racista e/ou homofóbico (o preço de furar a bolha), eu sei que é porque na cabeça dela minha imagem está quebrando certa expectativa social que o homem negro deve atender. Na cabeça delas, é incabível eu estar maquiado. É mais incabível ainda estar maquiado e trabalhar felizmente com isso. E ter relevância no meio. Olha que limitada (e limitante) esse pensamento! Mas aí não é problema meu. 

Para aqueles que estão começando sua jornada na maquiagem, especialmente aqueles da comunidade negra, quais conselhos você daria e quais recursos você recomendaria para ajudá-los a se sentirem mais confiantes e capacitados em seu próprio cuidado com a pele e maquiagem? 

Eu fiz muito curso antes de começar e isso foi fundamental. Se você puder fazer algum, faça. Mesmo que on-line! Também não precisa ter medo de experimentar. A maquiagem pode ser um excelente auxílio na jornada do autoconhecimento, basta se permitir. Mas se tratando de cuidados com a pele, já dizia Pedro Bial, nunca deixe de usar protetor solar!