Debaixo da terra e da pele marrom

Um território negro ocultado pela história oficial ressurge no coração de São Paulo, desafiando apagamentos e reivindicando memória. O Quilombo do Saracura resiste sob os trilhos do progresso.

Debaixo da terra e da pele marrom © Vincenzo Pastore/Instituto Moreira Salles

Desde que eu me lembre, sempre quis morar no Bixiga. Minha madrinha morava lá e, enquanto ela viajava, eu passava dias em sua casa. O que mais gostava de fazer era passear pelas ruas do bairro. Nunca tinha visto um lugar assim no Brasil: um território em que construções históricas, algumas bem conservadas — vá à Rua dos Ingleses e à Rua dos Franceses — e outras caindo aos pedaços — circule pelas Ruas Conselheiro Ramalho ou Maria José — compartilhavam um bairro em comum.

Eu observava atenta os detalhes das arquiteturas: fachadas ornamentadas, sobrados, puxadinhos, casas-cortiços, calçadas sujas, uma horta comunitária, um número incontável de botecos e restaurantes. Observava curiosa e detalhadamente as pessoas: gente na rua, crianças correndo, o vai e vem de locais como casas de produtos nordestinos, pessoas imigrantes e mulheres como as minhas avós Elizete e Alzélia, com suas calças confortáveis e vasinhos de ervas que curam.

Eu andava e sentia, tentava sistematizar as informações na minha cabeça. A cartografia sempre me ajudou nisso, pois olho o mapa e vejo além dele — assim é com meus parceires de trabalho no Coletivo Cartografia Negra.

O que o mapa não mostra

Pensar as cidades a partir das cartografias é um dos modos mais antigos de oficializar limitações, determinar áreas partilhadas ou particulares, espaços sagrados (igrejas, mesquitas, terreiros, cemitérios), delimitar limites e pertencimentos, criar símbolos para representar o desconhecido, invisibilizar narrativas e povos.

Assim, quando olhamos uma cartografia, também é importante observar o que não está representado: quais histórias não estão sendo contadas?

E foi com esse questionamento em mente que, ao andar pelo Bixiga e conversar com as pessoas moradoras mais antigas, me contaram sobre o Coletivo Mobiliza Saracura Vai Vai.

O movimento, fundado em junho de 2022, é composto por moradores do Bixiga, militantes do movimento negro, sambistas, pesquisadores, jornalistas, arquitetos, produtores culturais que lutam pela preservação da memória do bairro. O coletivo tem como mote a preservação e musealização no território dos achados arqueológicos, a permanência da população negra e pobre no Bixiga. Atualmente, seu trabalho se concentra na salvaguarda da história do Quilombo do Saracura, tensionada pela construção da estação de Metrô 14 Bis–Saracura, integrante da Linha Laranja da cidade de São Paulo. Importante salientar que o grupo não é contra a construção da estação do metrô; o que não compactua é com o apagamento histórico.

O Quilombo do Saracura ficava localizado às margens do Saracura, rio afluente do Rio Anhangabaú — ambos tamponados durante o processo de urbanização da cidade no início do século XX (atualmente, vivo e tamponado). Esse quilombo urbano fazia parte da vida da cidade de diversas formas: ali se refugiavam pessoas escravizadas que conseguiam fugir do regime escravocrata, e pessoas negras livres que criaram, às margens do Rio Saracura, modos de vida remetendo às tradições africanas, somando e aprendendo com os povos originários. O Saracura se expande por onde hoje é o Bixiga, tanto que, em 1831, foi fechado o acesso do córrego do Anhangabaú para evitar que mais pessoas chegassem até o quilombo.

Bixiga, antes de ser italiano

O Bixiga, que hoje é celebrado por uma tradição italiana, teve em sua primeira ocupação humana um espaço negro e indígena. Foi o primeiro quilombo urbano reconhecido em São Paulo. Importante ressaltar que, em momento algum, deseja-se uma caça às tradições italianas celebradas, mas sim a valorização e a demarcação das narrativas negras e indígenas em um bairro tão importante e particular na cidade de São Paulo — a maior metrópole do país e única megacidade da América Latina.

Faço todo esse preâmbulo pois o território que abrigou o quilombo está passando por uma série de ameaças que começaram em 2016, com o início das obras para a Linha Laranja do metrô (Brasilândia – São Joaquim). Dentre as ameaças, está a retirada da Escola de Samba Vai-Vai, em 2021, da quadra demolida para a construção do metrô — a quadra ocupada pelo Vai-Vai por 50 anos, uma das provas inquestionáveis da pré-existência do Quilombo do Saracura naquela localidade.

Entre os séculos 19 e 20, negros fugiam de fazendas e engenhos para Saracura, localizado onde hoje é o tradicional bairro do Bixiga.

A retirada da sede do Vai-Vai marca um capítulo importante nesta narrativa, pois fala de mais um processo de desenraizamento, tão caro às populações da diáspora. Nos arrancar de nossa terra é também arrancar uma parte das nossas tradições e nos remeter ao passado traumático e irreparável que foi o sequestro atlântico. Mas, ainda assim, nos levantamos, nos nutrimos e criamos vida.

Provas que brotam do chão

Seguida da retirada da escola de samba, iniciam-se as obras para construção da estação, e são achados utilitários, casas, objetos sagrados, entre outras peças que nos contam uma história sobre a região e a cidade de São Paulo que muito se quis esconder. Apesar de já serem ditas tanto por moradores do bairro quanto por estudiosos, essas informações foram ignoradas porque vão contra a narrativa oficial e abalam pontos estruturantes da história propagada pelos vencedores do capital. Posso listar alguns:

  1. A existência de pessoas negras anterior à chegada dos italianos em um bairro que hoje é principalmente celebrado por ser italiano.
  2. A presença de um quilombo urbano próximo ao centro da cidade.
  3. A existência do quilombo como uma das inúmeras estratégias de resistência do povo negro em São Paulo.
  4. A derrubada do mito da passividade das populações africanas frente à escravidão.

Assim, o espaço em que está sendo construída a estação de metrô 14 Bis–Saracura — vale o registro de que o nome foi uma das conquistas do Coletivo Mobiliza Saracura Vai Vai — é de suma importância para a história da cidade. Enquanto a obra avança, ressurgem mais e mais resquícios que comprovam as narrativas orais dos mais velhos do bairro, assim como as pesquisas e buscas arqueológicas de estudiosos e ativistas.

Durante o processo de construção da estação, no ano de 2024, foram encontradas diversas peças sagradas que orientam a alteração do tipo de trabalho arqueológico que deve ser realizado. O Sítio Arqueológico do Saracura já está registrado no Cadastro de Sítios Arqueológicos do IPHAN e, além de ser histórico, é religioso — o que acrescenta uma nova camada simbólica e material na construção da história da cidade.

Os rumos de preservação dos achados estão em um momento decisivo, como me foi contado nas reuniões de planejamento da Mobilização Saracura Vai Vai, pois o IPHAN está sendo pressionado pelo consórcio Linha Uni/Acciona, que realiza a obra, para seguir sem os devidos cuidados com os achados.

Registros da representação do orixá Exu, conchas e fios de conta, encontrados na escavação. Imagem: Mobiliza Saracura Vai-Vai

Há formas de preservar e construir. Temos exemplos de estações de metrô como a Monastiraki e a Syntagma, em Atenas — lugares que cuidam com carinho e seriedade de suas memórias, por mais contraditórias que sejam. Assim, também não proponho que se ‘crie a roda’ ou que seja feita alguma inovação absurda, pois, além dos exemplos citados, há inúmeras outras estratégias e realizações que podem fornecer caminhos para conciliar a edificação desta estação e preservar nossa memória. Aliás, entendo como uma oportunidade de concretizar as proclamações de comprometimento de empresas e governos com a reparação histórica.

Friso que não sou contra o metrô. Sou contra o apagamento histórico, como o Coletivo Mobiliza Saracura Vai Vai. Não podemos reduzir esse momento a uma disputa civilização x cultura, e sim compreender que todos ganham quando preservamos e criamos espaços para falar sobre as memórias da cidade.



É essencial, diante do que está ocorrendo, que haja pressão pública e que a população de São Paulo se conscientize do que está ocorrendo em sua cidade.

A primeira versão deste texto se findava no dia 27/02/2025, quinta-feira pré-Carnaval, onde ainda não tinha notícias da seguinte conquista: o IPHAN aprovou a continuidade das escavações do Sítio Arqueológico Quilombo do Saracura. Esse ganho é fruto de muita luta dos movimentos da sociedade civil — aqui destaco o Coletivo Mobiliza Saracura Vai Vai em sua atuação. Além disso, também está garantida a salvaguarda e a musealização das peças encontradas.

Quilombo do Saracura, presente!