Festivais cancelados e a luta por uma indústria musical justa

Cancelamentos em série mostram a urgência de uma indústria musical mais diversa e inclusiva, com apoio real às produções independentes

Festivais cancelados e a luta por uma indústria musical justa O BATEKOO Festival 2024, previsto para o dia 23 de novembro, será adiado para 2025 por falta de investimento.

Recentemente vi pipocando na minha timeline uma publicação diretamente do Mapa dos Festivais, a maior plataforma de conteúdo sobre festivais de música no Brasil, falando sobre o cancelamento e adiamento de alguns festivais no país. Tenho a percepção de que o Primavera Sound ter sido cancelado foi só a cereja do bolo, mais um sintoma do que nós, profissionais da economia criativa, estamos apontando há tempos. Se tá ruim para os grandões, imagine para os mais ousados, de pequeno e médio porte, que ousam desafiar o status quo? A instabilidade do mercado criativo brasileiro, agravada por diversos fatores, torna cada vez mais difícil a realização de eventos como esse.

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A pandemia da Covid-19 elevou drasticamente a precariedade do setor que já enfrentava desafios de valorização, ele foi um dos primeiros a sentir os efeitos da crise, com paralisação quase total das atividades. Para se ter uma ideia, de acordo com uma pesquisa realizada em parceria entre USP, Sesc, Unesco e as secretarias de cultura de todos os Estados brasileiros, metade dos cinco milhões de trabalhadores viu seu faturamento cair de 48% entre março e junho de 2020, ainda no primeiro ano da crise sanitária.  

As políticas públicas para planejamento e estruturação de sistemas organizacionais, embora existam, ainda são insuficientes e não conseguem garantir a estabilidade e o desenvolvimento do setor, especialmente nos municípios menores, que continuam sofrendo com a gestão cultural precária e sujeita a oscilações. 

Vejo nos Operários da Cultura os maiores símbolos de resistência e estratégia para driblar impossibilidades e encontrar soluções. Em 2020, pude participar da construção do Festival Favela em Casa, idealizado e produzido por Andressa Oliveira, Marcelo Rocha e Coletivo Favela em Casa, com programação gratuita e que reuniu música, teatro, dança, literatura e audiovisual, além de uma série de talks, em 12 horas de programação. Tudo transmitido pelas redes sociais, fortalecendo produtores, artistas, coletivos e demais profissionais da cadeia.

Festival Favela em Casa (2020) – Bastidores (Divulgação)

Em um cenário onde marcas investem milhões em influência e ações de experiência, há uma concentração de renda absurda, especialmente em São Paulo-SP, em formatos saturados e cansativos, que por vezes apresentam lines parecidas – brancas e cis-generas – e altamente perigosas pela concorrência desleal com as produções de menor escalão. 

Segundo o Mapa dos Festivais, até o final de agosto de 2024, 31 festivais de música alteraram sua data de realização, entre eles: Samba & Sofrência (BA), Rock Remembers (PE), Ilha Festival (MA) e Festival Vambora (MT). Desses, 14 foram cancelados, 15 adiados e dois festival tiveram 1 dos seus 2 dias de evento cancelado.

Enquanto o Baile da Vogue, no início deste ano, recebeu apoio de 20 marcas, o Festival Batekoo foi adiado por falta de patrocínio. Uma comparação que escancara a má gestão cultural de marcas, produtores e agências de influência e ativações que, como bem lembrou Kevin David, Fundador da KELE AG, insistem em tratar pessoas minorizadas como uma forma de comprovar uma relevância cultural que mal compreendem.  

A concentração de renda no segmento musical, com o qual tenho mais afinidade, é um problema grave que afeta a diversidade e a qualidade da produção cultural. Quem tem poder, dita as regras do jogo e dificulta a vida de quem quer fazer arte de maneira independente. A falta de apoio às produções independentes, seja por meio de políticas públicas ou de investimento privado, contribui para a perpetuação desse cenário onde só quem ganha é a banca. É preciso criar um ambiente seguro para que artistas independentes possam mostrar seu trabalho e o público tenha acesso a uma variedade maior de produções, para além do que é empurrado pelo mainstream.

Devo dizer que amo muito festivais mas, pessoalmente, ando pouco interessada nesse formato que já parece estar mais focado em publicidade do que em suas atrações artísticas. Nada contra publicidade, inclusive atuo e penso estratégias, o que me incomoda é perceber a falta de inovação e pensamento medíocre de quem está por trás, na tomada de decisões. De escolhas mais simples a complexas, se vê erros de todas as partes:

“Não tinha nenhum show que eu gostasse”, disse Caio Castro em entrevista ao F5, campeão de ações publicitárias no Rock in Rio. 

Minhas conclusões gerais são desconfortáveis e estão muito alinhadas ao que pensam outros pesquisadores. É urgente compreender a dimensão das mudanças que já esbarram na fragilidade ou mesmo inexistência de indicadores culturais de acesso, demanda e consumo de cultura, assim teremos subsídios para formulação de políticas públicas e ajudem a fortalecer o setor. 



Em uma meta ambiciosa, se espera gerar um milhão de novos empregos até 2030, elevando, em consequência, a atual participação de 3,11% do setor no Produto Interno Bruto (PIB). Por isso, precisamos de mão de obra qualificada e oportunidades vantajosas que atraiam profissionais, inclusive formalização, estabilidade e garantia de direitos.

Da mesma forma, penso que os consumidores também devem ser mais críticos em relação ao que lhes é ofertado, muitas vezes a preços acima da inflação. Precisamos nos responsabilizar por cobrar posicionamento, conduta coerente, inovação e boas práticas de governantes e dos gigantes do entretenimento brasileiro. Já diria Gilberto Gil, a gente tem que parar com essa história de achar que esse é um consumo supérfluo, cultura é direito, é o arroz com feijão, tem que tá na mesa, na cesta básica de todo mundo.