Governo de Portugal rejeita pagar reparações pelo legado colonial e escravagista

A declaração surge em resposta às observações recentes do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que disse que Portugal poderia encontrar formas de compensar as suas ex-colônias

Governo de Portugal rejeita pagar reparações pelo legado colonial e escravagista Presidente de Portugal Marcelo Rebelo de Sousa. Fonte: CC-BY-4.0: © European Union 2023– Source: EP

O governo de Portugal disse neste sábado, 27 de abril, que se recusa a iniciar qualquer processo para pagar reparações por atrocidades cometidas durante a escravidão transatlântica e a era colonial, contrariando comentários anteriores do presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

Entre o século XV e o século XIX, 6 milhões de africanos foram raptados e transportados à força através do Atlântico por navios portugueses e vendidos como escravos, principalmente no Brasil.

Rebelo de Sousa disse no sábado que Portugal poderia usar vários métodos para pagar reparações, como o cancelamento da dívida das ex-colônias e a concessão de financiamento. O governo afirmou num comunicado enviado à agência noticiosa portuguesa Lusa que pretende “aprofundar as relações mútuas, o respeito pela verdade histórica e uma cooperação cada vez mais intensa e estreita, baseada na reconciliação de povos irmãos”.

Mas acrescentou que “não tinha nenhum processo ou programa de ações específicas” para o pagamento de reparações, observando que esta linha foi seguida por governos anteriores. Chamou as relações com as ex-colônias de “verdadeiramente excelentes” e citou a cooperação em áreas como a educação, a língua, a cultura, a saúde, além da cooperação financeira, orçamental e econômica. Na terça-feira, o presidente sugeriu a necessidade de reparações, suscitando fortes críticas de partidos de direita, incluindo o parceiro júnior da coligação governamental Aliança Democrática, o CDS-Partido Popular, e o Chega, de extrema-direita.

“Não podemos colocar isso debaixo do tapete ou na gaveta. Temos a obrigação de pilotar, de liderar esse processo (de reparações)”, disse o presidente aos repórteres no sábado. A era colonial de Portugal durou mais de cinco séculos, com Angola, Moçambique, Brasil, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor Leste e alguns territórios da Ásia sujeitos ao domínio português. A descolonização dos países africanos e o fim do império na África só aconteceram meses depois da “Revolução dos Cravos” de Portugal , em 25 de Abril de 1974, que derrubou a mais longa ditadura fascista na Europa e inaugurou a democracia.

As reparações são medidas que procuram retificar uma injustiça hedionda com um reconhecimento e um pedido de desculpas. Neste contexto, referem-se a uma tentativa de remediar o trabalho não remunerado de milhões de africanos que chegaram como bens móveis humanos às diversas colônias no mundo. O seu trabalho foi vital para a acumulação do capital nestes países, mas nem eles nem os seus descendentes partilharam dos benefícios.

O objetivo de qualquer plano de reparação hoje é compensar os milhões de descendentes das pessoas escravizadas e, em teoria, reduzir as disparidades causadas pela escravatura.

Os brancos, especialmente aqueles que pertenciam a famílias escravistas, acumularam uma riqueza significativa com o trabalho não remunerado dos africanos. Os portugueses que colonizaram o Brasil foram buscar na África a força necessária para a cultura da cana-de-açúcar. Os escravizados trabalhavam em todas as etapas da produção do açúcar, desde o plantio até a fabricação do açúcar nos engenhos. Trabalhavam de sol a sol e eram castigados com violência quando não cumpriam ordens, erravam no trabalho ou tentavam fugir. Tinham que executar todos os trabalhos solicitados por seu “dono”.

Os escravizados também cultivaram algodão, tabaco e café, extraíam madeira, construíram ferrovias, cidades e desenvolveram as principais bases que alimentaram o crescimento da economia brasileira. A partir da metade do século XVIII, com a descoberta das minas de ouro, os escravizados de origem africana passaram a trabalhar também na mineração. Faziam o trabalho mais pesado, ou seja, quebravam pedras, carregavam cascalho e atuavam na busca de pepitas de ouro nos rios.

Interior de um navio negreiro, pintura do artista alemão Johann Moritz Rugendas. (aprox. 1830).
Interior de um navio negreiro, pintura do artista alemão Johann Moritz Rugendas. (aprox. 1830).

Nos séculos XVIII e XIX eram comuns, principalmente nas cidades maiores, os escravizados de ganho. Estes tinham a liberdade de executar serviços ou vender mercadorias (doces, por exemplo) nas ruas. Porém, a maior parte dos lucros destas atividades deveriam ser entregues aos seus proprietários.

A propriedade da terra tem sido o principal motor da riqueza do Brasil, uma cultura que perpassa de herdeiro a herdeiro, e a negação do acesso a ela aos negros brasileiros é a base sobre a qual existe hoje a disparidade de riqueza.

O trabalho imposto aos escravizados no Brasil até a abolição, em 1888, foi duro, massacrante e injusto, pois era forçado, sem quaisquer direitos e sem remuneração. Os escravizados recebiam apenas alimentação de baixa qualidade, roupas velhas e alojamento (senzala) subumano.

Muitos escravizados não resistiam e morriam de doenças ou em acidentes de trabalho, que eram comuns na época. Não possuíam não direito e eram vendidos e comprados como mercadorias. Contra estas condições de trabalho, muitos escravizados fizeram revoltas ou fugiram, formando os quilombos, onde podiam trabalhar de acordo com os costumes africanos.

Após a abolição, mais de 700 mil escravizados foram liberados sem qualquer tostão no bolso.

Para saber mais

O projeto Querino lança um olhar afrocentrado sobre a História do Brasil: mostra alguns dos principais momentos (como a Independência, em 1822, ou a Abolição, em 1888) sob a ótica dos africanos e de seus descendentes. Um podcast fundamental para entender, de forma simples, contextualizada, repleta de fontes e depoimentos de especialistas, o sistema de escravidão que vicejou no Brasil. O projeto tem idealização e coordenação do jornalista Tiago Rogero.

A longa história mundial de reparações

Portugal não é o primeiro país a debater o pagamento de reparações aos seus cidadãos; as nações têm um longo historial de distribuição de pagamentos compensatórios para corrigir os seus erros históricos.

Nos Estados Unidos, os americanos que receberam compensação por injustiças históricas incluem: nativos americanos, por terras confiscadas pelo governo; Nipo-americanos, por serem mantidos em campos de internamento; sobreviventes de abusos policiais em Chicago; vítimas de esterilização forçada; e residentes negros de Rosewood, uma cidade da Flórida que foi incendiada por uma multidão branca assassina.

No caso da Universidade da Carolina do Norte, os demandantes afirmaram que a universidade discriminou candidatos brancos e asiáticos ao dar preferência a candidatos negros, hispânicos e nativos americanos. A universidade respondeu que as suas políticas de admissão fomentavam a diversidade educacional

Hoje, as instituições assumiram um papel de liderança. Uma proeminente ordem de padres católicos disse que planeja arrecadar US$ 100 milhões para os descendentes das pessoas que escravizou. O Seminário Teológico da Virgínia criou um fundo de US$ 1,7 milhão para apoiar seminaristas negros e adoradores negros. O Seminário Teológico de Princeton disse que gastaria US$ 27 milhões em bolsas de estudo e iniciativas para reparar seus laços com a escravidão. Georgetown disse que arrecadaria cerca de US$ 400 mil por ano para beneficiar os descendentes das 272 pessoas escravizadas que foram vendidas para ajudar a faculdade há quase 200 anos.

Algumas cidades e vilas tomaram medidas. Em 2021, o subúrbio de Evanston, Illinois, em Chicago, tornou-se o primeiro a aprovar uma medida, fornecendo até US$ 25.000 aos descendentes diretos de seus residentes negros que foram prejudicados por políticas habitacionais discriminatórias entre 1919 e 1969.



Outros países

  • Colômbia: O governo pagou reparações aos seus cidadãos após uma guerra que durou 5 décadas, relata a Reuters . Foram atribuídos 23 mil milhões de dólares a vítimas de homicídio, violação e outros tipos de violência cometidos por rebeldes, grupos paramilitares de direita e forças armadas.

  • África do Sul: O governo pagou 3.900 dólares às vítimas dos crimes do apartheid em 2003, informa o New York Times. As reparações totalizaram 85 milhões de dólares e uma comissão recomendou originalmente que o governo pagasse 360 ​​milhões de dólares.

  • Peru: O governo peruano foi instruído a pagar aos seus cidadãos depois de um conflito de 20 anos entre forças estatais e rebeldes que levou à violência em massa, à morte de mais de 60.000 pessoas e à queda de um líder autoritário. A Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru foi considerada controversa, embora alguns cidadãos antecipassem reparações. O governo ainda não cumpriu os seus compromissos compensatórios.

  • Filipinas: Depois de o ditador Ferdinand Marcos ter controlado as Filipinas durante 14 anos sob regime marcial, o governo emitiu reparações às vítimas de violência e abuso, relata o Philippine Star.

Reparações a outras nações:

  • Ex-colonizadores: As nações caribenhas formaram a Comissão de Reparação do Caribe em uma tentativa de recuperar fundos de antigas potências coloniais para “crimes contra a humanidade do genocídio nativo, do comércio transatlântico de escravizados e de um sistema racializado de escravidão de bens móveis”.
  • Reino Unido: O Reino Unido pagou pouco mais de 25 milhões de dólares a 5.000 quenianos que foram vítimas de violência durante as revoltas Mau Mau na década de 1950, relata o Guardian. A rebelião Mau Mau foi uma guerra entre os quenianos e o seu antigo colonizador, o Reino Unido, numa tentativa de liberdade.

  • Alemanha: Após a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha pagou reparações às vítimas do Holocausto e deu a Israel 7 mil milhões de dólares enquanto a nação se formava, relata Vox. Em 2012, o governo alemão também pagou 89 mil milhões de dólares em reparações aos sobreviventes individuais.

  • França: Tem havido um longo debate sobre se a França deveria pagar reparações ao Haiti depois de paralisar a sua economia quando foi libertado da colonização. O Haiti originalmente pagou aos colonizadores franceses pelas plantações perdidas, relata o Washington Post. Desde então, apelaram à França para devolver o dinheiro ao Haiti sob a forma de reparações.