Toda beleza do Ilê Ayê

Conheça a estilista e artista plástica Dete Lima, uma das fundadoras do Ilê Aiyê, primeiro Bloco Afro do Brasil.

Toda beleza do Ilê Ayê

Quanto potencial existe em um quintal de terreiro? Talvez hoje, após anos de história e herança cultural, seja fácil imaginar, mas há mais de cinquenta anos, só Mãe Hilda de Jitolú conseguiu ver a potência que existia no Alto do Curuzu em Salvador. E foi ali onde ela plantou seus ensinamentos, cuidados e a sua fé. A colheita se materializou em diferentes legados, um deles é a sua segunda filha, Dete Lima, artista plástica aos 70 anos, estilista e fundadora do primeiro e mais tradicional bloco afro do Brasil, o Ilê Aiyê.

Aos 19 anos, Dete passou a materializar sua imaginação em figurinos para o bloco. Sua principal inspiração vinha da própria vivência no Ilê Axé Jitolú, onde nasceu e foi criada:  

“Quando eu nasci, minha mãe já era Ialorixá; nisso sempre a via vestindo os orixás e me vinha sempre uma pergunta: o que eu poderia fazer no corpo e na cabeça de uma mulher negra com um tecido? Com o surgimento do Ilê Aiyê, eu pude dar vida a toda essa minha imaginação de criança. Tanto que eu digo que quem me deu régua e compasso para eu estar onde eu sou hoje foi o Ilê Axé Jitolú e o Ilê Aiyê. Sempre conduzida pelos conselhos de uma Hilda”, conta. 

Foto: Gabriel Xavier | @gbxvr

Quando criança, Dete já sonhava em fazer o curso de Belas Artes na Universidade Federal da Bahia, porém seus caminhos dentro do terreiro foram suficientes para lhe graduar como artista:

“Uma vez, o professor Juarez Paraíso me entrevistou, e eu disse a ele que eu tinha vontade de fazer Belas Artes. Aí ele me disse: ‘Não, hoje você tem que ir para contar a sua história na escola de Belas Artes, porque muita coisa que você sabe e tem  experiência, muitos alunos, não têm conhecimento’”, relembra. 

A arte de Dete Lima ganhou fama principalmente pelo figurino das Deusas do Ébano do Ilê, todos feitos por ela e sua equipe. Além delas, muitas personalidades como Taís Araújo, Naomi Campbell, Angela Bassett, Justina Omokhua, vice-presidente da ParkWood, entre outras artistas, já foram vestidas e coroadas por Dete. 

Nos mais de 40 anos de Beleza Negra do Ilê, Dete relembra as diferentes relações que estabeleceu com as Deusas. O concurso amadureceu juntamente com a artista; ela conta que passou de “Dete” para “Tia Dete” e depois veio a se tornar “Mãe Dete”. “É uma relação de mãe e filha mesmo. Me sinto mãe de cada uma delas. É muito forte aquele  momento porque muitas chegam dizendo assim: ‘eu tô realizando o sonho de minha mãe, de minha avó, realizando um sonho muito importante na minha vida que é a senhora fazendo essa coroa na minha cabeça’. Tem meninas que choram e eu choro também com aquela emoção delas”.

Diferente de outros estilistas, a artista dispensa desenhos ou croquis. Seus modelos, feitos por amarrações ou costuras, são pensados e confeccionados na hora e, muitas vezes, no próprio corpo da modelo. Segundo ela, a inspiração vem das Yabás. 

“Porque minha fé com os voduns é tão forte que são eles que me dão toda essa inspiração. Tudo que eu faço, essa arte, vem deles, dos Orixás. (…) Eu deixo que minha mão guie, assim como o meu pensamento, com o espelho. A áurea daquela menina que eu estou vestindo, que vai me dando a inspiração para estar criando naquele momento, é muito gratificante e muito emocionante também. Então eu digo que esse dom foi me dado pelos voduns, pelos orixás, pelos caboclos, por todos os espíritos de luz. Eu digo que fui a pessoa abençoada e escolhida aqui dentro do Ilê para dar vida a outro tipo de figurino, outro tipo de coroa para cabeça de cada mulher negra que eu já vesti”, conta a artista plástica. 

Autoestima como matéria-prima 

Entre tecidos, estampas e costuras, Dete tem por principal matéria-prima a autoestima das mulheres negras que produz. Em todos esses anos, ela vem moldando e reconstruindo autoestimas, afetando não apenas as modelos, mas todas as gerações que acompanham o Ilê Aiyê.O fortalecimento da autoestima negra sempre foi um dos principais pilares do bloco e não é diferente com a artista plástica. Todo esse esforço também é um dos frutos semeados por Mãe Hilda, que, desde sempre, fez questão de cuidar, valorizar e manter a autoestima dos seus elevada, como relembra Dete:

“Eu cresci com minha mãe dizendo: ‘você é negra, é muito bonita e tem que se orgulhar disso’. Posso ter minha timidez, mas eu sou bonita e minha beleza não é artificial, é uma beleza que vem de dentro. Autoestima é a educação que você recebe, é o amor que você tem dentro de você e aí se espalha e você consegue passar para outras pessoas também“, conta.

E é essa autoestima que Dete Lima semeia em cada criação, em cada cabeça e no corpo de cada mulher negra que produz. Essa autoestima não fica apenas para a Deusa produzida, mas vem se espalhando e afetando as diferentes gerações impactadas pelo legado do Ilê Aiyê. E essa mudança coletiva é observada pela artista: 

“As mulheres negras passaram a se assumir mais. Principalmente depois do surgimento do Ilê. Não só mulheres como homens negros passaram a assumir a sua Negritude, ter orgulho mesmo de ser negro, brigar pela sua raça, contra toda a discriminação, todo racismo que a gente sabe que continua aí. Mas eu sinto que hoje nós somos mais fortes. Hoje somos mais fortalecidos e buscamos nos unir mais”, reflete.

Foto: Gabriel Xavier | @gbxvr

Ao olhar para a menina de 19 anos que ajudou a fundar o primeiro bloco afro do Brasil, Dete não carrega nenhum arrependimento. Aos 70 anos, ela assume que o Ilê Aiyê foi a melhor coisa que aconteceu em sua vida. Ao relembrar a primeira saída do Ilê, há 50 anos, ela afirma que ninguém imaginava o que o bloco viria a se tornar hoje:

“Nenhum daqueles jovens podia imaginar. Foi muito forte e muito gratificante. Foi muito valioso. Faria tudo de novo, porque hoje o Ilê faz parte de mim; ele é o ar que eu respiro. Ele é o sangue que corre na minha veia. Hoje, eu não sei viver sem ele. O Ilê representa minha vida, minha realização, minha família.” afirma Dete.

“Teve muita emoção no primeiro ano de carnaval. Vovô (do Ilê) e Popó passando mal na subida aqui do Curuzu. Aquela emoção de todo mundo. Minha mãe foi na frente porque ela disse:  ‘Eu vou para a rua com vocês, porque se a polícia aparecer, primeiro ela vai ter que me prender antes de poder prender vocês e seus amigos’, sabe? Então não teve pensamento no amanhã, só teve aquele momento de sair mesmo de ir para rua”, relembra o grande feito, na época em que o Carnaval de Salvador não tinha espaço para um bloco de negros da periferia.

Nestes anos ela conta que o mais marcante dos carnavais foi o de 2010, o primeiro logo após a morte de Mãe Hilda: “Ah, é vazio na sua vida. Você perdeu sua mãe, sabe? Foi o meu primeiro carnaval (sem ela). Fisicamente ela não estava, mas espiritualmente ela estava ali e dando força para todos nós”, relembra emocionada.

Ao falar dos carnavais, Dete conta que dispensa ir no trio por gostar de estar em contato com a multidão que veste as cores do Ilê, e se sente grata, pois sem aquelas pessoas não haveria como expressar a sua arte: 

“Eu me sinto assim realizada naquele momento falando dos figurinos, por poder agradecer, porque sem eles eu não conseguiria fazer tudo isso que eu faço. Se eu faço um turbante, uma amarração no corpo de uma mulher, é porque existem as mulheres para eu poder fazer; se não tivesse eu não conseguiria, sabe? Então [aquele momento] é uma vida, é um respiro, é um sorriso”, comenta, deixando transparecer em seu semblante a realização daquele momento, só no ato de relembrá-lo. 

Foto: Gabriel Xavier | @gbxvr

“Vou aprender a ler, pra ensinar meus camaradas”

Em um período tão marcado pela celeridade de informações, expectativas individuais e ansiedade com o que será o futuro, Dete Lima, sábia como sua mãe, nos presenteia com sua serenidade e calma, tendo como única preocupação com o futuro a passagem de conhecimentos, de saberes, de autovalorização da população negra. 



“Acho que as coisas só acontecem quando tem que acontecer, tudo no seu tempo, tudo muito tranquilo, sem muita afobação, sabe? Gosto de deixar as coisas acontecerem. Eu tenho uma preocupação de passar o que eu sei para outras pessoas, porque eu acho que essa arte não é para ficar calada, escondida, sabe? É para ser passada.

Então, procure sempre ajudar porque com isso você consegue atingir seus objetivos muito mais até do que o que você imagina; muito mais do que o que você espera, né? É procurar fazer pelo outro. Eu agradeço também a todas as mulheres negras por toda essa arte que eu faço porque, se não fossem elas, eu não conseguiria fazer. Então eu tenho gratidão por todas elas e desejo sucesso na vida de cada uma delas. Principalmente as mulheres mais jovens que estão aí, né? Não só as mulheres, como os homens também mais jovens: que eles não esqueçam que antes deles veio muita gente lutando, guerreando para hoje deixar o caminho aí para eles”.