Algumas histórias transcendem o tempo. Elas ecoam por gerações, desenterrando memórias, confrontando feridas e desafiando o presente a não repetir os erros do passado. É exatamente isso que A Lição de Piano, da Netflix, faz. Adaptada da peça de 1990 de August Wilson, vencedora do Prêmio Pulitzer, a obra é uma exploração profunda de legados familiares, tensões raciais e o peso da herança cultural negra.
Com direção de Malcolm Washington – filho de Denzel Washington – e estrelando John David Washington, Danielle Deadwyler, Ray Fisher e Samuel L. Jackson, o filme carrega não apenas a responsabilidade de adaptar uma das obras mais icônicas do teatro americano, mas também de continuar o trabalho de preservação do legado de Wilson iniciado por Denzel.
Começamos o longa com uma morte reacendendo o fogo em Boy Willie (interpretado por John David Washington): a morte de Sutter. Boy Willie e seu amigo Lemon (Ray Fisher) estão a caminho de Pittsburgh, na era da Grande Depressão, com uma caminhonete cheia de melancias. Eles estão indo para a casa do tio Doaker (interpretado por Samuel L. Jackson), que tem sido lar de sua irmã Berniece (papel de Danielle Deadwyler) e da filha dela, Maretha, desde que o marido de Berniece, Crawley, faleceu. Mas essa casa modesta abriga algo mais: um piano, ligado à família desde a época em que a escravidão era legal – algo que não parecia tão distante na América de 1936.
O piano em questão (que, aliás, Samuel L. Jackson e John David Washington já fizeram na Broadway) é mais que um objeto; é uma peça de arte viva, um memorial da experiência da família com a escravidão e sua posterior libertação. Durante a escravidão, o avô de Doaker, que era propriedade de Sutter, foi forçado a esculpir o piano como um presente de aniversário para a esposa de Sutter. Ele gravou então os rostos dos membros da sua família – um ato de resistência artística.
Mais tarde, Boy Charles, pai de Boy Willie e Berniece, roubou o piano dos Sutter durante um piquenique no 4 de Julho. Esse ato resultou na retaliação violenta de uma turba, que incendiou sua casa e o matou junto com outros desabrigados que estavam em um vagão de trem. Esse evento também deu origem à lenda de fantasmas conhecidos como Yellow Dog, acreditados por muitos como responsáveis por mortes misteriosas na família Sutter.
Agora, voltando à casa de Berniece, Boy Willie, em busca de um futuro, vê no piano uma oportunidade de comprar as terras que pertenceram a Sutter, um homem que simboliza o passado de opressão. Já Berniece enxerga no instrumento uma conexão com seus ancestrais, algo que não pode ser vendido sem que a história de sua família seja apagada. Então se dá início um confronto familiar que transcende o material.
August Wilson e o Ciclo de Pittsburgh
August Wilson é, sem dúvida, um dos dramaturgos mais importantes do século XX. Nascido em 1945, em Pittsburgh, ele cresceu testemunhando o impacto da segregação e da luta por direitos civis, elementos que moldaram sua obra. Wilson escreveu The Pittsburgh Cycle, uma série de dez peças, cada uma ambientada em uma década do século XX, que explora as experiências dos afro-americanos em uma narrativa épica. Essas peças são mais do que entretenimento; são uma documentação das dores, triunfos e contradições da vida negra nos Estados Unidos.
Entre as obras mais conhecidas estão Um Limite Entre Nós (Fences), A Voz Suprema do Blues (Ma Rainey’s Black Bottom) e A Lição de Piano (The Piano Lesson). Denzel Washington, em uma missão declarada de adaptar todas as dez peças do ciclo, já trouxe duas dessas histórias ao público com um olhar contemporâneo. Um Limite Entre Nós, de 2016, foi um triunfo de atuações e narrativa, com Viola Davis e Denzel ganhando prêmios no Oscar e a obra recebendo várias indicações, inclusive de Melhor Filme. A Voz Suprema do Blues, de 2020, emocionou o público com as performances intensas de Viola Davis e Chadwick Boseman, em seu último papel no cinema.
Elenco em sintonia
O peso emocional de A Lição de Piano está em seu casting. John David Washington entrega uma performance visceral como Boy Willie, um homem dividido entre a herança de sua família e sua ambição de criar algo próprio. Washington, que já havia mostrado sua força em filmes como Infiltrado na Klan e Malcolm e Marie, aqui mergulha profundamente no conflito interno de um personagem que enxerga o passado como um obstáculo a ser superado. Sua interpretação transmite a energia de alguém que luta contra os limites impostos pela sociedade racista da década de 1930.
Danielle Deadwyler, que interpreta Berniece, é um dos grandes destaques do filme. Sua performance captura a dor acumulada de uma mulher que carrega sozinha o peso das tragédias de sua família. Deadwyler, que ganhou destaque em Till – A busca da justiça, traduz com maestria a complexidade de Berniece, uma personagem que vive entre a reverência pelo passado e o desejo de seguir em frente.
Samuel L. Jackson, como Doaker, é o equilíbrio perfeito entre sabedoria e cansaço. Ele é o fio que une as gerações, tentando mediar os conflitos sem apagar as memórias que o piano simboliza, enquanto Ray Fisher, como Lemon, entrega nuances de um personagem que tem tanto de ingenuidade como de alguma disfunção mental, que enriquecem os diálogos já profundos de Wilson.
Direção e peso familiar
Malcolm Washington estreia como diretor em um longa que exige não apenas habilidade técnica, mas também sensibilidade cultural. E ele faz jus à densidade emocional da peça original. Malcolm carrega o peso de uma responsabilidade dupla: honrar a visão de August Wilson e provar que o talento da família Washington não é acidental. Coisa, aliás, que o irmão dele já demonstrou do lado da atuação, dando continuidade ao trabalho do pai, um dos maiores atores da história do cinema, mas também amplamente reconhecido no teatro.
Aqui, o diretor Malcolm equilibra o drama familiar com um toque sobrenatural, enquanto o fantasma de Sutter – literal e metaforicamente – assombra a narrativa. A direção é marcada por enquadramentos que enfatizam o peso emocional do piano, tratado quase como um personagem próprio, e por uma condução cuidadosa das performances, que nunca perdem a intensidade dos diálogos originais de Wilson.
Agora, é o outro filho fazendo jus ao pai também diretor, que entregou sensibilidade muito similar no igualmente maravilhoso Um Limite Entre Nós. Denzel, que é o produtor deste filme, já havia adaptado e sido produtor de duas outras obras deste dramaturgo: o já citado Um Limite entre Nós, no qual ele dirige e atua ao lado da Viola Davis, com a também linda atuação de Jovan Adepo. A Voz Suprema do Blues, último filme em que podemos apreciar o trabalho de Chadwick Boseman, é outra obra produzida por Denzel Washington, trazendo o universo de August Wilson para o grande público. Aqui, realmente comprovamos que o talento é mesmo de família.
O piano como símbolo
O piano em A Lição de Piano é mais do que um instrumento musical; é um campo de batalha. Decorado com imagens esculpidas pelos ancestrais de Berniece e Boy Willie, ele é um memorial da escravidão e uma prova da resiliência negra. Esse objeto, ao mesmo tempo artefato de dor e resistência, simboliza as contradições da história negra americana: a beleza criada mesmo diante da violência, o desejo de preservar o passado versus a necessidade de superá-lo.
O clímax do filme é a culminação de todos esses temas. O ato de tocar não é apenas sobre enfrentar um fantasma literal, mas sobre aceitar que a força da ancestralidade é o que permite avançar.
Questões raciais e contexto Histórico
Ambientado em 1936, o filme expõe como a escravidão e o racismo continuam a influenciar a vida dos personagens, décadas após a abolição formal. A disputa pelo piano reflete as tensões entre memória e progresso, entre respeitar a luta dos que vieram antes e a busca por uma identidade autônoma em um mundo que insiste em negar a humanidade negra.
Boy Willie vê no piano um símbolo de independência em uma sociedade onde negros raramente eram proprietários. Berniece, por outro lado, entende que a história de sua família está gravada naquele instrumento, tornando-o insubstituível. É uma luta que vai além do pessoal; é uma metáfora para os desafios da comunidade negra como um todo.
A Lição de Piano convida o público a confrontar sua própria relação com o passado e a refletir sobre o que significa carregar o peso da história enquanto se olha para o futuro. Com atuações excepcionais, uma direção sensível e um texto que pulsa com a alma de August Wilson, o filme é um marco não só para a Netflix, mas para o cinema negro contemporâneo.