Desde sua estreia em 2016, “Atlanta” tem sido uma força revolucionária na televisão. Criada e protagonizada por Donald Glover, a série não apenas redefiniu o gênero de comédia dramática, mas também abordou questões raciais com uma profundidade e uma franqueza raramente vistas na TV. Neste artigo, exploraremos como “Atlanta” se tornou uma obra essencial para entender a complexidade das relações raciais na América contemporânea, com um foco especial no uso do afro-surrealismo.
O criador, Donald Glover
Donald Glover é uma força singular na paisagem cultural americana, uma figura cuja carreira multifacetada transcende os limites tradicionais da arte e entretenimento. Nascido na Base Aérea de Edwards, na Califórnia, e criado em Stone Mountain, Geórgia, Glover emergiu como um polímata moderno – ator, roteirista, comediante, diretor, produtor e músico. Seu trabalho é caracterizado por uma profundidade emocional e comentários sociais incisivos, que frequentemente desafia as normas e expectativas da indústria. Desde seus primeiros dias escrevendo para “30 Rock” até sua atuação em “Community”, Glover demonstrou uma habilidade notável para mesclar humor e introspecção de maneira que poucos conseguem.
Como Childish Gambino, seu alter ego musical, Glover continuou a desafiar convenções e a influenciar a cultura pop. Seu single “This Is America” de 2018, acompanhado por um videoclipe visceral dirigido por Hiro Murai, se tornou um fenômeno cultural, provocando discussões sobre violência, racismo e identidade nos Estados Unidos. A capacidade de Glover de intercalar crítica social com arte de alta qualidade solidificou seu status como um dos artistas mais importantes de sua geração. Ele é um símbolo de versatilidade e inovação, cuja obra reflete a complexidade e a riqueza da experiência negra americana.
Glover criou “Atlanta” com o objetivo de oferecer uma representação autêntica da vida negra. Ele queria que a série fosse uma “Twin Peaks com rappers”, misturando realismo com surrealismo para explorar as nuances da experiência negra. Essa abordagem reflete influências de obras de David Lynch, bem como a profundidade sociocultural encontrada nos trabalhos de cineastas como Spike Lee e escritores como James Baldwin.
A série, amplamente aclamada pela crítica, se tornou um marco na televisão contemporânea, explorando temas complexos como identidade racial, sucesso e a surrealidade da vida moderna através de uma lente profundamente pessoal e inovadora. “Atlanta” não apenas solidificou Glover como um visionário criativo, mas também ampliou as fronteiras do que a televisão pode ser, demonstrando que narrativas ousadas e experimentalismo podem coexistir com um apelo popular.
Momento da criação
‘Atlanta’ foi lançada em um momento crucial na história contemporânea, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Pouco antes da eleição de Donald Trump, o clima político nos Estados Unidos estava altamente polarizado. A retórica divisiva de Trump, focada em imigração, segurança e economia, exacerbou as tensões raciais e sociais. Este período também foi marcado pela antecedência da ascensão do movimento Black Lives Matter, que ganhou força após vários casos de violência policial contra afro-americanos, incluindo os trágicos assassinatos de Trayvon Martin, Michael Brown, Eric Garner e George Floyd, nos Estados Unidos, e João Alberto Silveira Freitas, no Brasil. O movimento destacou a necessidade urgente de abordar questões de brutalidade policial e desigualdade racial sistêmica.
Dentro deste contexto, ‘Atlanta’ capturou de forma brilhante as tensões raciais e sociais da época. A série ofereceu uma crítica contundente à sociedade americana através de suas histórias e personagens, explorando as complexidades da vida negra urbana com um tom que variava entre o humor e a crítica social.
Esse período também coincidiu com uma crescente discussão sobre a representação negra na mídia, alimentada por produções como ‘Moonlight’, de Barry Jenkins, e ‘Get Out’, de Jordan Peele. ‘Moonlight’ ofereceu uma exploração poética e intimista da identidade negra e da sexualidade, enquanto ‘Get Out’ abordou de forma inovadora e provocativa o racismo estrutural e a fetichização das pessoas negras, utilizando o gênero do terror para causar impacto.
No Brasil, o país vivia a crise do impeachment da presidente Dilma Rousseff, resultando em um período de instabilidade política e econômica. Além disso, o Brasil também enfrentava desafios significativos em termos de desigualdade racial e social. Movimentos como o ‘Vidas Negras Importam’, inspirado pelo movimento americano Black Lives Matter, começaram a ganhar mais visibilidade, destacando as lutas contínuas contra o racismo e a violência policial no Brasil.
A representação negra na mídia brasileira também começou a ganhar mais atenção, com produções que buscavam trazer à tona a diversidade e as vozes negras, embora o caminho para uma representação justa e igualitária ainda estivesse em construção.
Portanto, o lançamento de ‘Atlanta’ não apenas ofereceu entretenimento, mas também refletiu e amplificou as conversas importantes sobre raça, identidade e representação. A série, juntamente com outras produções contemporâneas, ajudou a moldar e a desafiar as narrativas predominantes, promovendo uma compreensão mais profunda e matizada das experiências negras.”
Primeira Temporada: Introduzindo Realidades Negras
A primeira temporada de “Atlanta” estabelece a base para a exploração racial da série. Através dos olhos de Earn, Paper Boi e Darius, somos apresentados às lutas cotidianas dos personagens negros em Atlanta. A série aborda questões como pobreza, racismo institucional e o impacto da cultura hip-hop na juventude negra. Episódios como “BAN” (Black American Network) utilizam uma abordagem satírica para explorar a mídia e estereótipos raciais, enquanto outros episódios incorporam elementos surrealistas para enfatizar a estranheza da vida cotidiana para os negros americanos.
Segunda Temporada: Robbin’ Season e a Intensificação das Tensões Raciais
Conhecida como “Robbin’ Season”, a segunda temporada intensifica a abordagem de temas raciais. Episódios como “Teddy Perkins” exploram o trauma racial e a desumanização de artistas negros. A temporada também destaca a violência policial e a insegurança econômica enfrentada por comunidades negras. O episódio “Teddy Perkins” é um excelente exemplo do afro-surrealismo, combinando terror psicológico com comentários sociais profundos sobre o legado da violência contra artistas negros.
Terceira Temporada: Uma Jornada pelo Racismo na Europa
A terceira temporada leva os personagens principais para a Europa, onde eles enfrentam diferentes formas de racismo e xenofobia. Episódios como “Três Tapas” e “Sinterklaas is Coming to Town” exploram o racismo institucional na Europa, contrastando com as experiências nos EUA. O afro-surrealismo se manifesta em cenas como a do Zwarte Piet (Black Pete), onde as tradições de blackface na Holanda são criticadas de maneira incisiva.
Quarta Temporada: Reflexões Finais sobre Identidade e Raça
Na quarta e última temporada, “Atlanta” oferece uma reflexão profunda sobre identidade racial e o legado do racismo. Através de episódios como “The Goof Who Sat By The Door”, a série critica a indústria do entretenimento e seu histórico de racismo. A temporada final amarra as jornadas dos personagens principais, mostrando seu crescimento e a continuidade de suas lutas. Episódios como “New Jazz” utilizam o afro-surrealismo para explorar as viagens alucinógenas de Paper Boi e seu confronto com suas inseguranças e identidade.
Inclusive, é fundamental focarmos na complexidade de “The Goof Who Sat by the Door” (algo como “O Pateta que sentou perto da porta”), episódio brilhante e provocativo que mergulha fundo nas nuances e complexidades de “A Goofy Movie”, filme clássico da Disney, sugerindo que Pateta é um personagem negro e explorando temas de excepcionalismo e paternidade negra. As roteiristas Francesca Sloane e Karen Joseph Adcock, com direção de Donald Glover, apresentam Thomas Washington, um fictício CEO da Disney, cuja ascensão por engano ao cargo mais alto da empresa oferece uma perspectiva única sobre questões raciais e sociais. Este mockumentary mistura habilmente imagens reais da revolta de Los Angeles em 1992 com fotografias e videoclipes fictícios, criando uma biografia estilisticamente impecável e sociologicamente consciente, que explora as motivações e as complexidades da vida de Washington.
O episódio também critica o passado racista da Disney e seu progresso lento rumo à diversidade, destacando a introdução tardia de personagens como a primeira princesa negra em 2009 e a primeira personagem principal plus size em 2022. “The Goof Who Sat by the Door” não só oferece uma visão hilária e comovente de um personagem fictício, mas também levanta discussões importantes sobre a saúde mental dos negros e a negligência da depressão e ansiedade nos anos 90. Através de sua narrativa envolvente, o episódio revela uma história cativante de um homem que, apesar de ser fictício, poderia ter sido real, iluminando as lutas e triunfos da comunidade negra em um contexto que é ao mesmo tempo reflexivo e crítico.
A exploração dos temas Raciais em “Atlanta”
Representação Autêntica da Vida Negra
“Atlanta” é louvada por sua representação autêntica da vida negra. A série evita estereótipos comuns, apresentando personagens complexos e tridimensionais que refletem a diversidade da experiência negra. Glover e sua equipe de roteiristas, majoritariamente composta por negros, oferecem uma visão realista e multifacetada das lutas e triunfos de ser negro na América.
Crítica ao Racismo Institucional
A série aborda o racismo institucional de várias formas, desde a brutalidade policial até as disparidades econômicas. Episódios como “BAN” e “Money Bag Shawty” exploram como o racismo permeia todas as esferas da vida negra, desde a educação até o sistema financeiro.
O Impacto do Racismo na Saúde Mental
“Atlanta” também explora o impacto do racismo na saúde mental dos personagens. Episódios como “Teddy Perkins” e “Woods” destacam como o racismo sistêmico e o trauma racial afetam a saúde mental de artistas negros, levando a questões como depressão e ansiedade.
O afro-surrealismo em “Atlanta”
O afro-surrealismo é uma abordagem artística que mistura elementos do surrealismo com experiências e culturas negras, criando uma narrativa que desafia a realidade convencional. Em “Atlanta”, o afro-surrealismo é usado para destacar os absurdos e injustiças da vida negra, muitas vezes de maneira chocante e inesperada.
Para saber mais:
O afro-surrealismo por episódio
Temporada 2, Ep. #06: “Teddy Perkins”
Este episódio é um dos exemplos mais marcantes do afro-surrealismo na série. Teddy Perkins, interpretado por Glover, é uma figura sinistra que representa os horrores da pressão sobre artistas negros e o legado de abuso. O episódio combina elementos de horror com comentários sociais profundos, criando uma experiência perturbadora e inesquecível.
Temporada 1, Ep. #07: “B.A.N.”
Em “B.A.N.”, a série cria um canal de TV fictício completo com comerciais e programas, explorando estereótipos raciais e questões de identidade de maneira satírica e surreal. Este episódio usa o afro-surrealismo para criticar a representação midiática dos negros e questionar as normas sociais.
Temporada 3, Ep. #08: “New Jazz”
No episódio “New Jazz”, Paper Boi embarca em uma viagem alucinógena que o leva a confrontar suas inseguranças e a questionar sua identidade. Através de encontros bizarros e visões distorcidas, o episódio utiliza o afro-surrealismo para explorar temas de autenticidade e fama na vida de um artista negro.
Impacto Cultural e Legado Duradouro
Desde sua estreia, “Atlanta” tem sido aclamada por mudar a forma como as histórias negras são contadas na TV. A série não apenas trouxe diversidade para a tela, mas também abriu caminho para narrativas mais ousadas e subversivas. Sua abordagem inovadora e sua crítica social afiada estabeleceram um novo padrão para a televisão.
“Atlanta” influenciou uma nova geração de criadores de conteúdo, inspirando séries que exploram questões raciais de maneira semelhante. Glover, com seu talento multifacetado, tornou-se um modelo para muitos, mostrando que é possível ser bem-sucedido em várias áreas do entretenimento.
“Atlanta” é uma obra-prima que desafia classificações simples. É uma série que mistura comédia, drama e surrealismo de uma maneira única, oferecendo uma visão penetrante da vida negra na América contemporânea. Com sua narrativa inovadora e personagens inesquecíveis, a série redefine a forma como entendemos a experiência negra e deixa um legado duradouro na cultura pop.
Se você ainda não assistiu “Atlanta”, está na hora de embarcar nesta jornada. “Atlanta” não é apenas uma série; é uma experiência que te fará rir, pensar e, acima de tudo, sentir.
“Atlanta” , para rápido entendimento:
1. Quem criou “Atlanta”?
Donald Glover é o criador, escritor e protagonista da série.
2. Quantas temporadas tem “Atlanta”?
A série tem quatro temporadas.
3. Onde posso assistir “Atlanta”?
No Brasil, “Atlanta” está disponível na Netflix.
4. Qual é o gênero de “Atlanta”?
“Atlanta” é uma comédia dramática com elementos de surrealismo.
5. Por que “Atlanta” é considerada revolucionária?
A série é conhecida por sua narrativa inovadora, representação autêntica da vida negra e uso de surrealismo para comentar sobre questões sociais.