22.12.2024 Ícone da categoria

Chris Brown no Brasil: aplaudindo o inadmissível

Como a idolatria cultural perpetua o silenciamento da violência contra a mulher negra em um país marcado pela brutalidade

Chris Brown no Brasil: aplaudindo o inadmissível

Chris Brown veio ao Brasil, em São Paulo, para grandiosos shows nos dias 21 e 22 de dezembro de 2024, lotando o Allianz Parque com uma multidão extasiada. Essa cena, que deveria ser apenas mais um registro da idolatria que cerca grandes estrelas do pop, é também um retrato desconfortável do quanto estamos dispostos a ignorar o imperdoável em nome do entretenimento.

Em 2009, Brown foi condenado por agredir brutalmente Rihanna, uma das artistas negras mais importantes da nossa época. As imagens da cantora, com o rosto marcado pela violência, circularam pelo mundo, lembrando a todos que a brutalidade contra a mulher negra é um fantasma que insistimos em minimizar, relativizar ou simplesmente silenciar.

Mas o caso de Rihanna foi apenas o início de um histórico perturbador. Em 2013, Brown foi preso novamente por agredir um homem, resultando em uma acusação de agressão. Em 2017, sua ex-namorada Karrueche Tran obteve uma ordem de restrição de cinco anos contra ele, alegando ameaças e agressões físicas. Esse padrão de reincidência ilustra como a fama tem sido sua aliada, permitindo que comportamentos violentos sejam ignorados ou relativizados.

Mais recentemente, em 2024, o documentário “Chris Brown: A History of Violence” trouxe à tona mais detalhes sobre sua história de comportamentos abusivos. A produção expõe não apenas os casos amplamente divulgados, mas também padrões de agressão que foram silenciados pela indústria musical e pela sociedade que consome sua arte sem questionar.

E aqui estamos, quinze anos depois do caso Rihanna, celebrando um artista cujo legado é inseparável da violência que perpetrou. O Brasil, conhecido por ser um dos países mais perigosos para mulheres, especialmente mulheres negras, parece não ver contradição entre os gritos de “Eu te amo, Chris Brown!” e os dados alarmantes que compõem nossa realidade. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, uma mulher foi assassinada a cada sete horas no país, sendo 68% dessas vítimas mulheres negras. Essa é a verdadeira coreografia que acompanha nosso consumo cultural: a dissociação entre a arte e os atos de quem a produz.

É importante reconhecer que o mundo tem uma facilidade desconcertante em continuar condenando homens negros enquanto perdoa homens brancos com históricos de violência semelhantes ou até piores. Casos como os de Johnny Depp, acusado de violência doméstica, ou Mel Gibson, que enfrentou várias denúncias de abuso e comportamento agressivo, ilustram como a indústria e o público são muito mais generosos com figuras brancas. A fama e o privilégio racial muitas vezes garantem um retorno triunfal às suas carreiras, enquanto artistas negros, mesmo talentosos, carregam permanentemente o estigma de seus erros.

No entanto, reconhecer essa disparidade não deve servir para justificar ou relativizar os atos de Chris Brown. Pelo contrário, deve reforçar a urgência de condenarmos a violência em todas as suas formas, especialmente contra mulheres negras, que continuam sendo as principais vítimas de um sistema que as marginaliza e as silencia. A questão aqui é não apenas a justiça individual, mas também a responsabilidade coletiva de combater a permissividade à violência.

Não se trata de questionar o talento de Brown. Sua influência no R&B é inegável, sua voz, inconfundível. Mas é justamente essa capacidade de criar que torna sua presença no imaginário coletivo tão perigosa. Porque, ao aplaudirmos sua arte, é impossível não ecoarmos também a permissividade com que encaramos seus crimes. A cultura pop tem esse estranho poder de nos anestesiar, de transformar o algoz em herói, a manchete policial em trilha sonora.

Em um mundo onde a violência contra mulheres negras é normalizada, a indignação é uma forma de resistência. Não podemos nos dar ao luxo de separar o artista do homem. Não quando esse homem é um exemplo vivo de como o privilégio da fama pode apagar até as marcas mais profundas da agressão.

O consumo cultural é, sim, uma escolha política. E apoiar Chris Brown não é apenas uma questão de gosto musical. É compactuar com a ideia de que a genialidade pode absolver qualquer ato, por mais hediondo que seja. A cada ingresso comprado, a cada streaming de suas músicas, reafirmamos uma narrativa que diz: “Tudo bem.” Mas não está tudo bem.



Os números não mentem. O Brasil é líder mundial em feminicídios, e as mulheres negras são as mais vulneráveis. Em um país onde ser mulher negra é quase um ato de sobrevivência diária, como justificamos a celebração de um homem que personifica as violências que elas enfrentam?

Não é que não saibamos separar a obra do autor. O problema é que, ao fazer isso, ignoramos que a obra não existe sem o autor. E nesse caso, o autor traz consigo um histórico que deveria nos causar repulsa, não euforia. Celebrar Chris Brown é, em última análise, perpetuar o ciclo de silenciamento e de descaso que condena mulheres negras à invisibilidade.

A pergunta que precisamos fazer não é sobre a capacidade de perdoar, mas sobre as consequências de esquecer. E enquanto houver aplausos para Chris Brown, haverá também uma história que diz às mulheres negras: “Vocês não importam tanto assim.”