Uma coisa que você precisa saber sobre os estereótipos raciais: eles parecem impossíveis de eliminar completamente, mesmo que os ideais e sensibilidades da sociedade progridam ao longo do tempo. Mesmo que todos pareçam estar lutando contra isso. E isto mantém artistas negros, criadores de conteúdo negros e intelectuais negros numa constante defensiva. Mas, ao mesmo tempo, nos mantém nesta constante necessidade de falar sobre estes estereótipos e de desafiar estes estereótipos. Não é a toa, que a escritora Toni Morrison inteligentemente chamou o racismo de um meio de “distração”, um mecanismo que mantém as pessoas negras marginalizadas explicando repetidamente sua própria existência.
Entender essa realidade ajuda a explicar por que cada época tem pelo menos uma ou duas sátiras sociais lidando com a tensão entre a arte negra e o comércio da arte negra. A instigante estreia na direção de Cord Jefferson, American Fiction, ganhador do Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, e também indicado nas categorias de Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Ator Coadjuvante (para Sterling K. Brown) e Melhor Trilha Sonora Original, é a sátira da nossa época. Ele se baseia no romance de Percival Everett, “Erasure”, que foi publicado pela primeira vez há mais de duas décadas, mas que, naturalmente parece tão relevante como sempre, com a disseminação dos tropos raciais e todo o discurso que os acompanha.
Hackeando os estereótipos raciais.
Como tantos criadores, reais e fictícios antes dele, o protagonista do filme e do livro é o romancista Thelonious “Monk” Ellison, interpretado por Jeffrey Wright em um de seus melhores papéis até hoje. E ele inicialmente resiste aos limites da negritude estereotipada até se sentir desesperado demais para continuar resistindo. Cansado de múltiplas rejeições ao seu mais recente manuscrito, ele decide escrever o romance “mais negro” que pode imaginar, apenas para provar um ponto sobre o interesse superficial da indústria na narrativa negra. “My Pafology” – mais tarde renomeado como “Fuck” – é um melodrama de gueto escrito sob o pseudônimo astuto de “Stagg R. Leigh”. Tudo isso era para ser uma piada furiosa, mas acaba rendendo a ele uma grande oferta. E se tornando concorrido por uma editora e um produtor que quer adaptá-lo pro cinema. Tudo pra grande angústia existencial de Monk, mas também pra seu benefício financeiro. E apenas seu agente Arthur sabe a verdade.
O fato é que o Monk tem alguns predecessores no universo da ficão: desde o aspirante a ator Bobby Taylor em “Confusões em Hollywood”, que não consegue o estrelato em uma Hollywood onde a maioria dos papéis para os negros são estereótipos e o que sobra vai para pessoas chamadas Eddie Murphy, Richard Pryor ou Danny Glover. Há também o grupo fictício de hip-hop que parodia o NWA no filme “CB4”, até o roteirista de TV Pierre Delacroix em “Bamboozled: a hora do Show”, do Spike Lee, além de muitos outros. Referências diretas e indiretas no filme “Ficção americana” a Tyler Perry e ao romance “Push” de Sapphire também são perceptíveis, ainda mais considerando que este livro inspirou o filme “Precious” (que, vale ressaltar, Tyler Perry co-produziu).
Em relação à sua premissa, rotular o filme de Jefferson como ousado ou pioneiro parece um exagero, embora ele seja muito engraçado e muito preciso em sua representação da indústria editorial. E apesar da evidente inteligência do filme, é a sua conclusão ambígua, que se afasta do material original, o que desperta mais curiosidade e torna a sua digestão mais desafiadora. Longe de ser uma falha, essa faceta é, na verdade, a mais transgressora do filme, levantando questões sobre as limitações criativas desse gênero de obra como crítica cultural. É uma tradição que, em parte, serve como um ato de resistência contra as mesmas indústrias que restringem as representações da negritude.
Neste tipo específico de sátira, geralmente há um ponto em que o protagonista, seduzido pelo brilho da fama e da fortuna, chega ao limite e tenta resgatar sua alma com algo que lembra dignidade. Mas em “Ficção Americana”, isso não acontece dessa forma.
Os últimos minutos do filme tomam uma reviravolta abrupta de uma forma metalinguística absurda. Absurdo que foi apenas sugerido nas partes anteriores do filme. No seu final, diferentes destinos para Monk são imaginados, mas nenhum deles se alinha.
Para entender como as possibilidades são apresentadas para Monk, considere que partir daqui teremos spoilers. Após a publicação do livro, os elogios à obra de Monk atingem o ápice quando “Fuck” é considerado para um prêmio prestigioso, do qual Monk, por acaso, é juiz. Ele e sua colega, a autora negra, Sintara Golden – cujo best-seller, ironicamente terrível e estereotipado, é a ruína da existência criativa de Monk – concordam que “Fuck” é um lixo “alcoólatra”. No entanto, eles são derrotados por seus colegas brancos, ansiosos para coroar esta obra “essencial”, independentemente de seus méritos estéticos.
Durante a cerimônia de premiação, “Fuck” é anunciado como o grande vencedor, deixando o público em dúvida se o autor misterioso do livro finalmente se revelará. Após alguma hesitação, Monk sobe ao palco, deixando todos confusos. Antes que ele possa dizer qualquer coisa, a cena entra em fade out apenas para revelar Monk em um set com um produtor de cinema bajulador e sem noção chamado Wiley, interpretado por Adam Brody.
Wiley tinha inicialmente planejado transformar “Fuck” em um filme, mas Monk tem uma ideia diferente. Ele propõe escrever sobre sua experiência criando o pseudônimo Stagg R. Leigh – essencialmente, os eventos de American Fiction. Agora, na cerimônia de premiação, eles discutem opções para o final do filme. A sugestão inicial de Monk, o corte ambíguo que acabamos de assistir, não impressiona Wiley, embora se aproxime da verdade. (Monk comenta que, na vida real, ele simplesmente saiu da cerimônia.)
A segunda sugestão de Monk é que seu personagem corra para se reconciliar com Coraline, a namorada que ele afastou enquanto lidava com sua grande mentira de Stagg. É quase um final de comédia romântica, com Monk correndo até sua porta para se desculpar: “Não tenho sido eu mesmo ultimamente”.
Wiley rejeita essa ideia também.
A terceira e última proposta é a mais dramática e exagerada: Monk sobe ao palco para receber o prêmio, apenas para ser alvejado por agentes federais em uma saraivada de balas; afinal, Stagg R. Leigh é um fugitivo procurado. (Por quê, exatamente? Isso não importa.)
Claro, Wiley fica encantado com esse desfecho, e um Monk irritado, porém resignado, sai para encontrar seu irmão Cliff, que o aguarda do lado de fora do estúdio em um conversível. Antes de partirem para o sol de Hollywood, Monk troca olhares com um ator negro vestido como um escravo. O ator faz um gesto de paz, Monk concorda. É o verdadeiro fim.
Experimentalismo VS Convencionalismo
Além de uma cena anterior em que dois personagens de “Fuck” surgem da imaginação de Monk para representar uma cena enquanto ele a concebe, esse final de “escolha sua própria aventura” é o mais formalmente experimental de “Ficção Americana”. Embora um tanto prejudique o filme, essas duas sequências sugerem um reino de possibilidades para uma versão diferente e mais estranha do filme – algo mais próximo do livro Erasure, talvez.
Sim, porque o livro de Everett de 2001 é muito mais “experimental” do que sua versão cinematográfica, como é possível na forma de romance, alternando constantemente entre modos literários e vozes. Em determinado momento, a narrativa de Monk mergulha em 10 capítulos ininterruptos de “Fuck”, permitindo que o leitor compreenda completamente seu conteúdo profundamente ignorante e o tipo de pessoas brancas que o elogiam como representando uma experiência negra “autêntica”. É divertido e contundente, equilibrando a vida pessoal e a auto-aversão de Monk com vislumbres de como o público responde a”Fuck” por meio de críticas elogiosas e entrevistas à imprensa.
Em contraste, “Ficção Americana” se concentra mais profundamente no drama familiar íntimo de Erasure, dedicando grande parte de seu tempo de execução à tumultuada vida pessoal de Monk. Sua decisão de manter o estratagema de Stagg é parcialmente impulsionada pelas finanças disfuncionais de sua família; sua mãe Agnes está doente e, com a morte inesperada de sua irmã Lisa, as responsabilidades financeiras e de cuidados recaem sobre ele.
Este aspecto do filme é habilmente retratado e oferece um olhar perspicaz, porém sutil, sobre a precariedade desproporcional da riqueza geracional, mesmo entre as famílias negras americanas mais prósperas. (Sua família é composta por médicos, Monk sendo a exceção.) No entanto, em certos momentos, parece que estamos assistindo a um filme completamente diferente, divergindo da estranheza inerente às desventuras profissionais de Monk. Os temas satíricos são mantidos dentro de um contexto familiar e linear – a editora branca, que só se comunica com Monk por telefone, esperando que Stagg R. Leigh fale “na linguagem dos negros”; e o produtor de cinema excessivamente confiante.
O enigma persiste: essas armadilhas da indústria cultural permanecem sempre relevantes, uma distração constante que merece nossa atenção. No entanto, talvez esta sátira seja um tanto direta demais e poderia se beneficiar de uma dose extra de estranheza. As sátiras mais cativantes impulsionam críticas e/ou exploram abordagens mais ousadas e surpreendentes para transmitir questões antigas – pense nas obras fantásticas “Desculpe te incomodar”, e “Sou de Virgem”, ambas de Boots Riley, ou na surrealista e nada conhecida no Brasil, a série “Random Acts of Flyness”, do Terence Nance. Mas Cord Jefferson já afirmou que sua intenção era fazer uma sátira, “mas não uma farsa”.
Fico curioso sobre as reações de como o público fictício reagiria em relação a “Fuck”, além dos editores brancos e produtores de Hollywood que lucram com isso. O Black Twitter estaria postando seus julgamentos cheios de sabedoria nas redes sociais? Os estudantes universitários estariam debatendo sobre seus méritos nos campi? Os comentaristas de direita estariam falando do livro como mais uma prova da apologia ao “crime entre negros”? “Ficção americana” não parece interessado nessas questões, embora os estereótipos sobre pais ausentes e mães dependentes de assistência social não sejam os únicos desafios enfrentados pelos negros hoje em dia. Ser rotulado como “ativista irritante”, “beneficiário de cotas”, “negro mimizento” também é uma batalha diária.
E, no entanto, embora “Ficção Americana” não revolucione totalmente a longa tradição de satirizar os clichês da cultura negra, suas nuances são bem executadas e sustentadas por performances excelentes, especialmente a de Jeffrey Wright, que torna o condescendente, irritado e obcecado Monk um prazer para passar algumas horas junto.
Além disso, o desfecho real se aproxima de algo verdadeiramente subversivo, já que Monk não enfrenta consequências pela farsa de Stagg. Não está claro se ele terá alguma. E ele não parece tão abalado com isso, ao contrário, por exemplo, de Bobby, no filme “Confusões em Hollywood”, que recusa seu primeiro papel principal como um cafetão. E também ao contrário da sua versão literária em “Erasure”, de Percival Everett, que imagina no final ver um garoto, “talvez eu quando criança”, segurando um espelho em seu rosto para revelar Stagg R. Leigh em seu reflexo.
Monk em “Ficção Americana” está frustrado por ter que continuar jogando para “ter sucesso”? Certamente. Mas não o suficiente para recusar esses cheques em troca de sua alma. A arte imita a vida e a vida se torna filme. Como Monk disse a Wiley durante sua apresentação: “Não há moral. Essa é a ideia.”