O Brasil, país de vasta diversidade cultural e religiosa, vive um paradoxo: oficialmente laico, mas profundamente marcado pela influência de tradições cristãs, tanto nas esferas públicas quanto privadas. Apesar da Constituição de 1988 garantir a laicidade do Estado, a prática cotidiana revela um cenário onde a intolerância religiosa, especialmente contra as religiões de matriz africana, ainda persiste. Em um país onde o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira só foi tornado obrigatório em 2003 pela lei 10.639/03, a cultura afrodescendente continua a enfrentar desafios significativos para conquistar o reconhecimento e respeito que merece.
Dentro desse contexto, a arte surge como uma poderosa ferramenta de resistência e educação. E foi exatamente essa a trajetória escolhida pelo quadrinista baiano Hugo Canuto. Nascido em Salvador, cidade marcada pela herança afro-brasileira, Canuto decidiu unir suas paixões pelos quadrinhos e pela cultura de sua terra natal para criar uma obra que não só celebra, mas também educa sobre as raízes culturais do povo Yorubá. Em 2016, ele iniciou a criação de Contos dos Orixás, uma série de histórias em quadrinhos que se tornou um marco na representação das divindades e mitos afro-brasileiros.
O surgimento de um projeto Visionário: Contos dos Orixás (2019)
Após dois anos de trabalho intenso, Hugo Canuto lançou em 2019 o primeiro volume de Contos dos Orixás. A obra foi financiada de forma independente através de três campanhas de financiamento coletivo na plataforma Catarse, conseguindo um apoio expressivo de quase três mil pessoas, o que resultou na impressão de 12 mil exemplares. Este volume se tornou um marco na história dos quadrinhos brasileiros, especialmente por ser uma das primeiras HQs no país a incluir trechos no idioma Yorubá, acompanhados de um glossário detalhado para aproximar o leitor dessa língua falada por milhões de pessoas no mundo.
Contos dos Orixás rapidamente ganhou notoriedade por sua abordagem única dos mitos e narrativas dos Orixás, divindades que possuem uma relevância cultural comparável a heróis épicos de outras culturas, como os personagens da Ilíada, Odisseia e Mahabarata. Canuto conseguiu, através de sua obra, trazer à luz a profundidade e a universalidade dos temas abordados pela mitologia Yorubá, como destino, família, amor e guerra.
A resposta ao lançamento foi extraordinária. A HQ não apenas capturou a imaginação dos leitores brasileiros, mas também atravessou fronteiras, alcançando leitores em diversos países, incluindo Estados Unidos, África do Sul, Portugal e Islândia. Esse sucesso foi coroado com prêmios importantes, como o Prêmio Angelo Agostini de 2020 para melhor lançamento e o Troféu Abébé de Prata 2019. Além disso, a obra foi finalista do Prêmio Jabuti 2020 na categoria Histórias em Quadrinhos, o que consolidou Contos dos Orixás como uma referência na literatura gráfica brasileira.
Expansão internacional e reconhecimento cultural
O impacto de Contos dos Orixás não se limitou ao território brasileiro. A qualidade e a profundidade da obra chamaram a atenção de instituições e eventos internacionais de prestígio. Em 2020, a HQ foi adquirida pelo Smithsonian National Museum of African Arts, localizado em Washington, D.C., uma das instituições mais importantes no estudo e preservação das artes africanas. A obra foi integrada à coleção permanente do museu e está disponível para exibição e consulta pública, sendo utilizada para fins educacionais e de pesquisa. Além disso, algumas artes da série de ilustrações Orixás, criada por Canuto em 2016, foram doadas ao museu, ampliando ainda mais o alcance cultural da obra.
Outro marco significativo na trajetória de Contos dos Orixás foi sua exibição na San Diego Comic-Con, em 2024, o maior evento de cultura pop do mundo. A obra de Hugo Canuto foi apresentada em uma seção dedicada ao afrofuturismo, no recém-inaugurado museu da Comic-Con, na cidade de San Diego, Califórnia. Esta exposição não apenas reforçou a importância da HQ no cenário global, mas também destacou o papel crucial da obra na difusão da cultura afro-brasileira em espaços tradicionalmente dominados por narrativas ocidentais.
O Rei do Fogo: a continuação da saga (2022)
O sucesso de Contos dos Orixás abriu caminho para a continuação da saga. Em 2022, Hugo Canuto lançou o segundo volume da série, intitulado Contos dos Orixás 02 — O Rei do Fogo. Este novo volume, assim como o primeiro, foi financiado de forma independente através do Catarse e trouxe uma nova perspectiva à história dos Orixás. Enquanto o primeiro livro focava em uma narrativa mais ampla e generalista, O Rei do Fogo mergulha nas histórias de origem dos Orixás, abordando eventos que se passam cronologicamente antes dos acontecimentos do primeiro volume.
Este segundo volume é o primeiro de uma trilogia que pretende explorar ainda mais profundamente o universo mitológico dos Orixás. O Rei do Fogo destaca divindades como Exú, Ogum, Oxóssi, Oxum, Iansã, Xangô, Yemanjá e Oxalá, oferecendo ao leitor uma visão mais detalhada de suas histórias e poderes. Canuto conseguiu, mais uma vez, unir sua paixão pelos quadrinhos e pela cultura afro-brasileira para criar uma obra que não apenas entretém, mas também educa e conscientiza sobre a riqueza cultural dos mitos Yorubás.
Projeção Global e Novos Projetos
Com o sucesso dos dois primeiros volumes de Contos dos Orixás, Hugo Canuto continuou a expandir o alcance de sua obra. Em 2024, a HQ foi lançada nos Estados Unidos sob o título Tales of the Orishas, em uma edição de capa dura publicada pela Abrams Books. O lançamento internacional marcou um novo capítulo na jornada de Contos dos Orixás, levando as histórias dos Orixás a um público ainda maior e solidificando o impacto global da obra.
Além de Contos dos Orixás, Canuto tem explorado novas narrativas e culturas. Ele está finalizando um novo projeto de fantasia épica intitulado A Canção de Mayrube, inspirado nas culturas pré-colombianas. Este projeto, assim como Contos dos Orixás, foi lançado através de campanhas de financiamento coletivo no Catarse e promete trazer uma nova perspectiva sobre as narrativas míticas da América Latina.