A Netflix amplia seu repertório de produções relevantes com Irracional (The Madness), uma série que combina o ritmo frenético de um thriller conspiratório com uma análise contundente das estruturas de poder e desigualdade racial. Liderada por Colman Domingo, em uma atuação marcante, a trama nos transporta para o mundo de Muncie Daniels, um âncora de TV que vê sua vida virar de cabeça para baixo após ser acusado de um assassinato que não cometeu. O título original, The Madness, captura com mais precisão o espírito da série, evocando tanto a desorientação psicológica quanto o colapso das verdades sociais que ela retrata.
Logo nos primeiros episódios, Daniels se retira para uma cabana nos montes Poconos, buscando um momento de tranquilidade para escrever um livro, apenas para encontrar o corpo mutilado de seu vizinho. O que deveria ser uma fuga do caos rapidamente se transforma em um pesadelo: ele é perseguido por agressores mascarados, acusado pela polícia e se vê no centro de uma conspiração que vai muito além de um único crime. A vítima, líder de um grupo supremacista branco, é uma figura polarizadora, e a narrativa expõe como preconceitos raciais tornam Daniels o alvo perfeito para a acusação. A série utiliza esse cenário para explorar as camadas de racismo sistêmico que permeiam tanto as instituições quanto o tecido social.
Colman Domingo, já celebrado por performances em Rustin, Fear the Walking Dead e Euphoria, entrega uma atuação cativante e multifacetada. Ele dá vida a Daniels com uma mistura de vulnerabilidade e força, capturando a angústia de um homem que, apesar de bem-sucedido, ainda é tratado como culpado pela cor de sua pele. Domingo é um mestre em equilibrar emoções complexas, e sua interpretação aqui eleva a série a um patamar superior. A atuação de Domingo reforça por que ele é considerado um dos atores mais importantes de sua geração, um talento capaz de navegar entre o mainstream e projetos profundamente significativos.
Além de Domingo, o elenco brilha com atuações impactantes. Marsha Stephanie Blake interpreta Elena, a ex-esposa de Daniels, com uma profundidade rara para personagens desse tipo. Em vez de ser relegada a um papel secundário, Elena é uma figura ativa na trama, alguém que luta para ajudar Daniels enquanto lida com seu próprio medo e desconfiança. Alison Wright, memorável em The Americans, interpreta uma das antagonistas mais assustadoras vistas recentemente na TV. Sua presença na tela é gelada e imponente, tornando cada cena em que aparece inesquecível. Deon Cole surpreende ao se afastar de seu histórico cômico, mostrando camadas inesperadas de humanidade e intensidade. John Ortiz e Stephen McKinley Henderson, veteranos de longa data, trazem peso e credibilidade às suas interpretações, solidificando o núcleo dramático da série, com destaque para Gabrielle Graham como Kallie, primeira filha de Muncie, jovem extremamente politizada e consciente das injustas dinâmicas sociais e raciais da América, que se reaproxima do pai a partir deste trágico momento.
Sob a direção de Clement Virgo, cineasta jamaicano-canadense conhecido por obras como Brother e Rude, Irracional ganha uma estética que combina tensão constante com nuances emocionais. Virgo tem o talento de transformar uma história de perseguição em uma reflexão mais ampla sobre desigualdade e poder. Suas influências de clássicos paranoicos como Todos os Homens do Presidente e O Fugitivo são claras, mas ele as reinventa com um olhar contemporâneo que ressoa com o público atual. A fotografia da série, embora ocasionalmente prejudicada pela tendência da Netflix de iluminações escuras, é eficaz em criar um ambiente claustrofóbico que reflete o estado mental de Daniels.
Mais do que um thriller convencional, Irracional é uma obra profundamente enraizada em questões sociais. A série aborda como o racismo sistêmico molda narrativas e como a desinformação alimentada pelas redes sociais pode distorcer percepções e destruir vidas. Daniels é um exemplo claro disso: um homem negro que, apesar de ser uma figura respeitada na mídia, é rapidamente vilanizado por uma sociedade disposta a acreditar no pior. A trama também explora como as instituições – mídia, polícia e política – muitas vezes trabalham juntas para perpetuar desigualdades, pintando um retrato alarmante do mundo contemporâneo.
Apesar de seu ritmo frenético e das inúmeras reviravoltas, a série encontra momentos para aprofundar suas críticas sociais. O roteiro de Stephen Belber, que já explorou dinâmicas humanas complexas na peça Tape, dirigida por Richard Linklater, é afiado e mantém o público envolvido. Embora o último episódio tenda a exagerar na tentativa de conectar a narrativa ao estado atual da mídia e da política, a série raramente perde seu foco central: a luta de um homem comum contra forças muito maiores do que ele.
Irracional não apenas entretém, mas também desafia o espectador a refletir sobre a realidade ao seu redor. É um lembrete poderoso de que a ficção pode ser um espelho, expondo as falhas de nossa sociedade enquanto nos mantém na ponta do sofá. Colman Domingo mais uma vez prova por que é um dos maiores talentos de sua geração, e Clement Virgo demonstra que é um dos diretores mais hábeis em traduzir histórias de peso emocional e relevância política para a tela. Para quem procura uma experiência que vá além do escapismo, Irracional é essencial.
