Existe uma frase profundamente inspiradora de autoria da escritora norte-americana Toni Morrison: “Se há um livro que você quer ler, mas não foi escrito ainda, então você deve escrevê-lo.“
Quando nos deparamos com o nascimento de uma editora como a Serra da Barriga, é muito difícil esta frase da única autora negra ganhadora do Nobel de Literatura não vir à mente. “O que queremos com a Serra da Barriga é, além de publicar livros sobre pessoas negras — porque é importante que negros de destaque sejam referências na vida de outros negros —, contribuir para a inclusão e formação de pessoas negras interessadas em trabalhar com livros”, disse Jaime Filho, um dos fundadores da editora, em entrevista exclusiva para a Casablack.
Jaime Filho, ao lado da também fundadora Andréia Amaral, reconheceu no mercado editorial a falta de livros que desejava encontrar. Interessados em divulgar a memória e acolher e promover a herança cultura do povo negro através de publicações, fundaram a Serra da Barriga, editora que foca em não-ficção, especialmente em biografias e em obras que celebram a diversidade da música negra, incluindo gêneros como samba, funk, jazz, rap, blues, trap e soul. O nome nasceu deixando claro seu propósito: no século XVIII, estabeleceu-se na Serra da Barriga, em Alagoas, no Quilombo dos Macacos, a sede do Quilombo dos Palmares.
Brasil sob uma nova perspectiva.
“Nossa editora nasce da urgência de preencher lacunas históricas e promover a representatividade no mercado editorial”, destaca Amaral. “Nós somos otimistas e ambiciosos. Não estamos satisfeitos com os escaninhos reservados aos pretos nas livrarias. Queremos mais. Não faltam negros excepcionais com biografias que precisam ser escritas. Estamos apenas começando. Aguardem-nos”, completa Jaime Filho.
A primeira obra a abrir o catálogo da editora é Na roda do samba, de Francisco Guimarães, conhecido como Vagalume. Originalmente publicado em 1933, o livro é uma preciosa documentação dos primórdios do samba e de seus protagonistas. Francisco Guimarães, um boêmio escritor do início do século passado, registrou em suas crônicas jornalísticas os primeiros passos desse gênero musical tão emblemático da cultura brasileira.
A edição, cuidadosamente preparada por Leonardo Affonso de Miranda Pereira, conta com notas e posfácio que enriquecem a compreensão do texto original, proporcionando aos leitores uma experiência ainda mais significativa. Este lançamento é apenas o primeiro de muitos que a Editora Serra da Barriga planeja colocar no mercado nacional para enriquecer e diversificar o panorama editorial, recontando a história do Brasil sob uma nova perspectiva, que valoriza e celebra a contribuição do povo negro para nossa identidade cultural.
Além de publicar obras que valorizam a cultura negra, um dos objetivos fundamentais da Serra da Barriga é fomentar a presença de profissionais negros em todas as etapas do processo editorial. Desde diagramadores até revisores, tradutores e demais colaboradores, a editora está empenhada em criar oportunidades e valorizar o talento e a expertise desses profissionais.
Acompanhe a entrevista de Jaime Filho e Andréia Amaral para a Casablack, no qual demonstram estar extremamente alinhados à provocação de Beyoncé: “Os negros precisam ser donos de suas próprias narrativas”.
Como surgiu a ideia de fundar a editora Serra da Barriga e qual foi o principal impulso por trás dela?
Jaime Filho: No fim de 2019, eu comecei as pesquisas para escrever a biografia de Carlos Alberto Caó, autor da lei que tipificou o racismo como crime no Brasil. A partir daquele momento, passei a olhar com mais atenção para o mercado literário e observar como e onde estavam as biografias sobre pessoas negras.
Um dado me chamou atenção: entre 2010 e 2019, dos dez autores premiados na categoria de biografias e reportagem do Prêmio Jabuti (a maior premiação literária do país), dez eram brancos. Na mesma categoria, no mesmo período, dos dez livros premiados, apenas dois eram sobre pessoas negras. Esses 20%, em média, é a parte que cabe aos negros do latifúndio branco editorial. Ali, entendi que poderia haver uma demanda por livros de não ficção sobre essas personalidades.
Acho que ainda está muito aquém, mas se você for em uma livraria verá que o espaço dedicado aos livros de ficção escritos por autores e autoras negros já aumentou bastante. O mesmo não aconteceu ainda com as biografias. Temos uma trilha a percorrer.
Andréia Amaral: A editora é um projeto originalmente do Jaime. A gente não se conhecia, até ele entrar em contato comigo para combinar uma conversa e apresentar a ideia. Eu havia trabalhado mais de 20 anos numa editora grande, conhecia muita gente, e estava fazendo consultoria para autores independentes e editoras. Na ocasião, me impressionou o fato de ele nunca ter trabalhado diretamente com livros, não ter nenhuma ligação com o mercado editorial, mas já estar com um projeto bem-elaborado, inteirado a respeito de detalhes importantes pra quem quer começar na área. Fiz algumas sugestões, apresentei algumas pessoas que poderiam também orientá-lo e nossas ideias foram se afinando, até que ele me convidou para ser sócia da Serra da Barriga.
Considerando o cenário atual do Brasil, marcado por debates sobre representatividade e inclusão, qual é o papel que vocês veem para a Serra da Barriga na promoção da diversidade na literatura?
Jaime Filho: O que nós ouvimos com frequência, quando se fala em tornar os ambientes de trabalho mais diversos, com mais negros, é que não se sabe onde estão essas pessoas ou que elas não estão devidamente qualificadas. O que queremos com a Serra da Barriga é, além de publicar livros sobre pessoas negras (porque é importante que negros de destaque sejam referências na vida de outros negros), é contribuir para a inclusão e formação de pessoas negras interessadas em trabalhar com livros.
Essa entidade “o mercado”, incluindo aí o editorial, tem seus interesses e suas resistências, mas eles precisam acompanhar as mudanças do mundo, que caminha para frente. Do contrário, vão ficar pelo caminho. Uns adaptam-se de forma mais veloz, outros de maneira um tanto acanhada. Mas o espaço que queremos ocupar não será concedido. A gente precisa ajudar a construir isso. Nós estamos dispostos a ser essa porta de entrada de profissionais negros no mercado editorial. A gente entra, constroi algo hoje, depois outra coisa amanhã, depois outra ainda, depois de amanhã. O importante, como diz o samba de Jorge Pessanha e Padeirinho, “quando o primeiro começa / os outros depressa procuram marcar / seu pedacinho de terra pra morar”.
A Serra da Barriga existe porque editoras como Mazza e Malê vieram antes. E esperamos que outras muitas surjam depois. É um caminho sem volta. Isso precisa ficar claro. Não tem ninguém aqui esperando caridade ou concessões.
Ao lançar “Na Roda do Samba”, qual é a mensagem que a editora pretende transmitir sobre a cultura afro-brasileira e sua contribuição para a sociedade?
Jaime Filho: O samba é provavelmente o traço cultural mais relevante do país. Ter fora de catálogo um livro que retrata o surgimento do gênero, seus primeiros ídolos e seus locais de origem, era um completo absurdo. E mais: o que explica o fato de Francisco Guimarães, considerado o primeiro cronista de carnaval do país, referência obrigatória para quem pretende entender como se ergueu o ritmo, ter ficado por décadas no ostracismo? Então, começar a Serra da Barriga por aqui, com esse livro, é também o movimento simbólico de olhar para trás e resgatar o que já estava aí escondido.
Vocês acreditam que existe uma lacuna na representação de personalidades negras na literatura brasileira? Como a Serra da Barriga pretende preencher essa lacuna?
Jaime Filho: A Serra da Barriga surge menos interessada nas lacunas e mais na profusão de nomes capazes de preenchê-las. Se olharmos para as artes, se olharmos para os esportes, para as áreas médicas, jurídicas… não faltam personalidades negras dignas de receberem biografias robustas, de peso. O copo cheio é nosso foco.
Em um mercado editorial predominantemente dominado por grandes editoras, como vocês planejam competir e se destacar, especialmente focando em narrativas históricas e biográficas de personalidades negras?
Jaime Filho: Gosto muito de uma frase do editor italiano Roberto Calasso que diz: “fazer bem o que antes se fizera com negligência, fazer pela primeira vez o que havia sido ignorado até então”. Acho que veste como uma luva às ambições da Serra da Barriga. Nosso diferencial? É olhar para as histórias que estão aí, há tempos sendo ignoradas pelas grandes editoras. E há um público ávido por elas.
A principal dificuldade para uma nova e pequena editora é caminhar sem um catálogo. Estamos iniciando com um único livro. O bom desempenho do Na roda do samba vai ajudar a colocar na rua o segundo livro, e assim por diante.
Andréia Amaral: Uma editora que está iniciando tem a vantagem de ser mais acessível. As pessoas nos procuram para apresentar projetos e conseguimos ouvi-las, conversar, a gente fala das potencialidades e das nossas dificuldades de forma muito clara, então abrimos a possibilidade de caminhar junto dos autores. Com isso, muitas ideias interessantes que acabam não chegando na mão das grandes editoras são apresentadas pra gente.Temos limitações, o que também nos faz ser mais criativos, buscar alternativas, e quando apostamos é porque acreditamos no potencial que o livro tem, precisamos que dê certo. Os autores se sentem valorizados por isso.
Quais são os critérios de seleção para os livros que serão publicados pela Serra da Barriga? Vocês têm planos específicos para abordar diferentes períodos históricos e áreas de interesse?
Andréia Amaral: De início, os dois pilares da editora são biografias de pessoas negras (aqui se encaixam também livros de memórias) e música negra, com uma coleção específica para esse segundo pilar. A identidade e a linha editorial da Serra foram muito bem-definidas quando ainda estávamos desenhando nossos objetivos e pensamos o que queríamos publicar. Isso é importante para nortear nossos projetos e nos diferenciar no mercado para o nosso público e para quem quer publicar com a gente.
Jaime Filho: Como biografias são produções que demandam um esforço grande de pesquisa, apuração e produção, optamos por começar com as reedições. Assim, teríamos tempo para ir tocando em paralelo as produções originais. Por outro lado, acreditávamos que, após o lançamento da editora, possíveis originais pudessem chegar já bem encaminhados, o que de fato está acontecendo. Isso sem fazermos nenhuma chamada para o recebimento de originais.
7Considerando o contexto político e social do Brasil, marcado por debates sobre racismo estrutural e reconhecimento da história afro-brasileira, como vocês enxergam o papel da Serra da Barriga na educação e conscientização do público?
Jaime Filho: Eu tenho insistido em dizer que a questão racial sempre esteve da porta pra fora da minha casa. Parte de minha infância foi na região do Rio conhecida como Pequena África, mas o letramento racial é bem recente. Insisto nisso para lembrar que muitos não tiveram acesso – por diversas razões – a nomes fundamentais de nossa história. Surge daí o interesse da Serra da Barriga em resgatar a memória para além do terreno da oralidade. É importante registrar em livros as experiências e memórias do nosso povo. Essa e as futuras gerações de negros e negras têm esse direito, de conhecer perspectivas diversas de suas origens.
Andréia Amaral: Grande parte dos artistas, esportistas e celebridades negras que admiramos tem histórias muito parecidas em relação às dificuldades que enfrentaram, ao esforço que tiveram que fazer para ocupar certos espaços, simplesmente por não serem brancos. A gente precisa registrar essas histórias, porque conhecimento liberta. Caminhamos para um futuro em que certos comportamentos não serão mais tolerados, mas não podemos apagar essas histórias, pelo risco de elas parecerem inverossímeis.
Além de “Na Roda do Samba”, quais são os próximos lançamentos programados pela editora?
Jaime Filho: Alguns projetos estão em fase de negociação, então ainda é cedo para compartilhar. Mas entre os já contratados, há o lançamento da trilogia biográfica Samba de Oliveira, com livros dedicados a Silas de Oliveira, Paulo da Portela e Cartola. O projeto ganhou esse nome por conta do sobrenome dos três. As obras de autoria de Marília Trindade Barboza, escritas em parceria com Arthur Oliveira (Silas e Cartola) e Lygia Santos Paulo da Portela), ganham nova edição após décadas fora de catálogo.
Dentro da Coleção Batuke, vamos relançar ainda o livro Samba de umbigada, de Edison Carneiro, uma obra raríssima deste intelectual dedicado aos estudos sobre a cultura e o folclore afro-brasileiro.
Quais são as expectativas da Serra da Barriga para o futuro? Vocês têm planos ambiciosos para expandir o catálogo e influenciar positivamente o cenário literário brasileiro?
Jaime Filho: Acreditamos que podemos contribuir para a construção de uma maior diversidade cultural afro-brasileira, sobretudo no que diz respeito à memória e à música. Nosso objetivo é consolidar a Serra da Barriga como uma casa editorial de referência na preservação da memória e na divulgação das histórias e origens da comunidade negra no Brasil.
Existem editoras mais voltadas à literatura de ficção; existem as casas editoriais publicando livros sobre o pensamento dos intelectuais negros e é excelente e necessário que elas existam. O diferencial da Serra da Barriga está na representatividade, na possibilidade de ver outros negros inspiradores na capa de nossos livros. Acreditamos que esse é um outro degrau do letramento racial. Há um público relevante interessado em suas origens, em suas histórias e em busca de identificação com histórias que o inspire e faça seguir adiante. Dentro desse escopo, tudo nos interessa. São a esses campos de atuação que estamos dedicados.