“O avesso da pele”: O desassossego de se deixar afetar

Obra vencedora do Jabuti é leitura fundamental.

“O avesso da pele”: O desassossego de se deixar afetar Imagem: Divulgação

É preciso dizer de primeira: “O avesso da pele”, livro de Jeferson Tenório publicado pela editora Companhia das Letras em 2020 e vencedor do Prêmio Jabuti na categoria “Romance Literário”, é de uma fluidez surpreendente, considerando-se a profundidade no tratado da obra.

Nesta obra de ficção, Pedro, filho de Henrique, conta a partir de sua própria perspectiva a história de vida de seu pai, que morre repentinamente de forma trágica, vítima de violência policial. Envolve o leitor a descrição de Pedro dos afetos do pai, ao fim do livro relatados como inventados – na tentativa de preencher a falta de Henrique, “esta história é ainda a história de uma ferida aberta”.

São muitos os trechos que eu gostaria de citar aqui em que Tenório demonstra maestria em dar voz (nomes, neste caso) aos desejos, inseguranças, expectativas e frustrações de Pedro, que se debruça sobre o resgate de sua ancestralidade e da própria existência de seu pai com uma sensibilidade louvável.

Eu queria ter morado num pensamento teu. Como uma forma de amor. Um amor entre pais e filhos. Um amor intelectual, silencioso e delicado. Mas eu tenho a morte de um pai ainda muito próxima. Acho que inventei uma memória sobre você sem a distância e a maturidade necessárias. Sei disso, mas a minha ingenuidade é tudo que tenho.

Nessa empreitada são entrelaçados os afetos e memórias da família, contextualizando as relações complexas resultantes de vidas marcadas pela violência, pela desigualdade social e pelo racismo, e como estes cruzamentos afetam a própria história do menino. É uma obra que definitivamente vale a leitura.

É curioso que tenha me afetado durante a leitura a ocorrência de alguns eventos que infelizmente são comuns à vida de grande parte dos homens negros brasileiros: as abordagens policiais, o desprezo do chefe branco, a fetichização pela namorada branca, por exemplo. Essa inquietação me fez questionar a qualidade do livro inicialmente. Os eventos mencionados indicaram pra mim uma superficialidade, como se Jeferson tivesse escolhido todos os clichês do que significa ser um homem negro no Brasil pra contar a história de Henrique. Mas não são reais as estatísticas? Não é alarmante e questionável o número de homens negros encarcerados? Não são absurdos os dados de violência policial no país?

O escritor Jeferson Tenório. Imagem: Divulgação

Não desisti da leitura – ainda bem. Porque ao fim, me dei conta do lugar deste incômodo. Ele indica na verdade o cansaço de ser atingida por essas histórias todos os dias. Afinal de contas, um clichê só é clichê se ocorrido incessantemente, de tal forma que toma um lugar comum, banal. Nesta associação livre, caí em mim: Esse não pode ser o lugar do racismo, e de outras aberrações que são minimizadas pela abstração do estrutural.

Esses acontecimentos, por mais que comuns, devem continuar absurdos, chocantes e inaceitáveis.

“O caminho da consciência é lugar de desassossego”, diria Luciene Nascimento. E o é porque depois de adentrado, não se pode mais voltar atrás. As mazelas assumem então dois extremos: a completa insanidade de afogar-se completamente nas notícias ruins, ou a abominável banalização, ainda que como mecanismo de defesa.

A vida simplesmente acontecia e você simplesmente passava por ela. Mas, quando o professor Oliveira contou para sua turma sobre Malcolm X, quando vocês conversaram sobre Martin Luther King, quando pela primeira vez você ouviu a palavra “negritude”, o seu entendimento sobre a vida tomou outra dimensão, e você se deu conta de que ser negro era mais grave do que imaginava. (...) Você anotou tudo porque estava estupefato. O conhecimento nunca o havia atingido daquela forma.

Experimentamos isso todos os dias, mas a pandemia pode ser mencionada como um período que evidenciou a nossa impossibilidade psíquica de lidar com o peso do mundo enquanto lidamos com os nossos próprios pesares.

É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque
não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no
mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de
viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa
nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado, e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.

No fim das contas, vale a busca pelo equilíbrio, que acaba sendo relativo pra cada um. Especialmente como pessoa negra, preservar a saúde mental e as pequenas alegrias em meio ao caos também são formas de resistência. Não há caminho certo a ser seguido. Mas “O avesso da pele” me fez lembrar que se deixar afetar é importante e necessário pra começo de conversa. É a partir disso que traçamos novas estratégias, dentro das nossas possibilidades, de existir e resistir.