A cantora, compositora e pesquisadora Luciana Oliveira lançou seu livro Catálogo de Cantoras Negras Brasileiras no dia 9 de fevereiro, durante a FLISS – Festa Literária de São Sebastião. O livro, fruto de sua pesquisa de Mestrado em Fonoaudiologia na PUC-SP, traça um panorama da atuação de cantoras negras no Brasil ao longo dos séculos, cobrindo diferentes regiões e contextos históricos. O ponto de partida da pesquisa foi a necessidade de registrar a estética afro-diaspórica no canto e na performance musical dessas artistas.
Luciana percebeu que havia uma lacuna na documentação sobre cantoras negras, especialmente aquelas que atuam fora dos grandes centros culturais. Motivada por essa ausência, decidiu criar um registro definitivo que preservasse suas histórias e contribuições para a música brasileira. “Como o Brasil tem cuidado da memória e do legado das mulheres negras na música? A música, o canto e o repertório dessas cantoras são responsáveis por resgatar e difundir um Brasil quase esquecido”, reflete a autora.
O livro revisita a trajetória de figuras pioneiras que abriram caminhos e fortaleceram os laços entre África e Brasil, bem como de artistas contemporâneas que seguem inovando no cenário musical. Entre as homenageadas estão Leci Brandão, uma das raras mulheres a conquistar espaço na ala de compositores da Mangueira, e outras referências fundamentais da composição feminina, como Dolores Duran e Dona Ivone Lara.

A obra também destaca artistas que elevaram o canto feminino a um estatuto quase divino, como Elizeth Cardoso; cantoras que romperam barreiras nos instrumentos musicais, como Cátia de França; e aquelas cujas vozes evocam a força ancestral das águas, como Lia de Itamaracá. Para além dos nomes consagrados, Catálogo de Cantoras Negras Brasileiras amplia a perspectiva sobre a diversidade e potência da música negra feminina no Brasil, incluindo artistas contemporâneas de diferentes regiões do país. Liniker, Luedji Luna, Karol Conká, Letícia Fialho, Jaque Barroso, Isaar e Bia Ferreira são alguns dos destaques dessa nova geração.
A identidade visual do livro foi concebida pela designer Natali Gomes, enquanto a supervisão acadêmica ficou a cargo da pós-doutora Goli Guerreiro, autora de A Trama dos Tambores e Terceira Diáspora. A produção executiva do projeto é assinada por Jussara Salles (Cabeça de Nega), e a publicação será lançada pela Editora Dandara. O livro estará disponível para compra no site: dandaraeditora.com.br.
Após a estreia na FLISS, Catálogo de Cantoras Negras Brasileiras terá lançamentos em São Paulo nos dias 15 de fevereiro, na Livraria Tapera Taperá, e 21 de fevereiro, no Petróleo Music, localizado na Galeria Nova Barão.
Confira a entrevista exclusiva que Luciana Oliveira concedeu à Casablack:
Seu livro nasce da necessidade de preencher uma lacuna na documentação sobre cantoras negras no Brasil. Durante sua pesquisa, qual foi a maior dificuldade em resgatar essas histórias e quais descobertas mais te surpreenderam?
As maiores dificuldades foram encontrar registros sobretudo das cantoras de épocas anteriores. A Lapinha e Camila Maria da Conceição, por exemplo, que são ali dos séculos 18 e 19, tem o livro do Sérgio Bittencourt e alguns artigos, mas o nome delas foi muito pouco difundido. Também quando saímos dos principais eixos, como Rio e São Paulo, torna-se mais difícil a história destas mulheres ser documentada, mesmo quando falamos de cantoras do século XX por exemplo.
Dentre as descobertas, destaco a história da cantora Paraibana Cátia de França. Mulher, negra, lésbica, nordestina, instrumentista, uma intelectual que bebe da fonte da literatura para escrever suas composições e que se auto intitula “mulher centauro”: metade mulher, metade instrumento. A história de Alcione, e todo seu berço familiar dentro da música. Dolores Duran, que mesmo morrendo aos 29 anos de idade, tornou-se a compositora mais gravada do Brasil. Identificar também que mesmo as cantoras que consideramos um pouco mais conhecidas, como Dona Ivone Lara, nunca tiveram grandes vendagens de discos. Outra grata surpresa, foi poder encontrar cenas musicais ativas de cantoras negras em locais como Goiás, Ceará, Mato Grosso, locais, que ainda são pouco difundidos na cena nacional.
Como foi o processo de seleção das artistas e quais critérios foram fundamentais para compor esse catálogo?
A ideia inicial era abranger cantoras de todas as regiões do Brasil, de diversos estilos e gêneros musicais, com o objetivo de mostrar exatamente essa diversidade. Mas precisávamos de um recorte inicial, para que esta primeira edição fosse possível, e optamos por começar os registros por cantoras que se lançaram a partir dos anos 2000. Porém, não tem como falar do presente, sem trazer algumas referências do passado, ainda mais quando falamos de cantoras negras, e dedicamos um capítulo para trazer alguns nomes que foram uma base para o canto negro, que denominamos de Canto fundamento, contando um pouco sobre as trajetórias de algumas cantoras como Dona Ivone Lara, Elizeth Cardoso, Dolores Duran, Leci Brandão, Alcione e Margareth Menezes, além de escolher três homenageadas para esta edição, que foram Lia de Itamaracá, Cátia de França e Dona Onete, mulheres do norte e nordeste do Brasil. A partir daí buscamos um equilíbrio de cantoras por regiões, por relevância musical, ainda que essa relevância compreendesse apenas cenas locais e gêneros musicais. Dessa forma conseguimos construir uma primeira edição bastante diversa e abrangente, reunindo cantoras de todas as regiões do Brasil.
Você menciona que a música dessas cantoras ajuda a resgatar e difundir um Brasil quase esquecido. Na sua visão, o que ainda precisa ser feito para que o legado dessas artistas seja amplamente reconhecido e valorizado?
Uma das perguntas que me fiz foi, é como o Brasil tem cuidado da memória destas cantoras? O que pude perceber, é que apesar de algumas iniciativas isoladas, muito do acervo de diversas cantoras encontram-se pouco cuidado ou resguardado. Ainda que algumas cantoras possuem biografias, essas iniciativas ainda são pequenas, diante da dimensão dessas vozes no Brasil. Isso sem contar as cantoras que viveram ou vivem em regiões menos acessadas em nível nacional. Essa iniciativa, eu considero que é apenas um começo, diante do tanto que ainda tem para ser conhecido e resguardado, para que suas histórias sobrevivam para a posteridade. Por exemplo, o que podemos fazer para que as novas gerações conheçam a obra musical de uma Clementina de Jesus, por exemplo, e também possam acessar cenas musicais contemporâneas de cantoras negras do Ceará, Goiás, Mato Grosso? Todos esses lugares têm seus nomes expoentes, e a questão que a maioria enfrenta, é conseguir fazer seus trabalhos ecoarem em outros eixos do Brasil, e basicamente o que mais falta é apoio e incentivo. As leis de incentivo são fundamentais, e é através delas que a maior parte das cantoras consegue gravar, e ter uma estrutura para lançarem seus trabalhos, porém estas iniciativas ainda são pequenas, diante da quantidade de cantoras. Outro aspecto muito levantado por algumas cantoras entrevistadas, é o fato de mesmo em suas próprias localidades, muitas vezes não serem escaladas para grandes festivais ou iniciativas que têm uma estrutura maior.
Então considero que a iniciativa do Catálogo contribui, tanto para difusão , quanto para que suas histórias fiquem preservadas e registradas para a posteridade.
A estética afro-diaspórica no canto e na performance musical foi um dos eixos do seu estudo. Como essa estética se manifesta na prática e de que forma ela dialoga com a identidade negra no Brasil?
O estudo do canto no Brasil ainda tem uma base muito eurocêntrica. Quando falo da estética afro diaspórica, acho que a ideia é trazer um modo de fazer e aprender que nos aproxime das diversas tradições afro -brasileiras , por exemplo, nesse alinhamento entre o canto, a dança, o rito, o sagrado. Nas trocas coletivas, na potencialização do reconhecimento da historicidade do corpo, conectado a sua ancestralidade. Perceber que o canto é um monte de camadas. Não é somente aquele corpo rígido, que precisa se apropriar de uma voz ideal. Mas um corpo fluido, que está sempre em diálogo, que traz essa concepção de tempo espiralar, conversando com o passado, o presente e o futuro.
Além do lançamento do livro, quais são os próximos passos desse projeto? Você imagina desdobramentos como um documentário, exposições ou novas edições ampliadas dessa pesquisa?
Com certeza. Inicialmente a ideia é a continuidade. Reconheço que ainda ficaram muitas lacunas nesta primeira edição. Há todo um caminho a ser percorrido e reconhecido. Então a ideia é poder começar uma nova edição, e continuar os registros e entrevistas sobretudo com as cantoras que já estão com idades mais avançadas, como Alaíde Costa e Áurea Martins e Patativa no Maranhão, por exemplo.
Acho que a pesquisa não pode parar, e a primeira edição nos ajudou a apontar muitos caminhos.
Fora isso, gostaria muito de documentar essas entrevistas através de materiais audiovisuais, e sim, poder futuramente construir um documentário, que aborde as cantoras, suas histórias e seus territórios.
Uma mostra também está dentro das nossas realizações, bem como um festival de música.