22.04.2024 Ícone da categoria

Mano Brown e Racionais MC’s: potência e grandiosidade negras

No aniversário de Mano Brown, Alê Garcia faz um registro pessoal e profundo sobre a importância do artista e do Racionais MC's

Mano Brown e Racionais MC’s: potência e grandiosidade negras Ilustração de Thiago Limón, responsável pelo projeto gráfico do livro "Negros Gigantes"

[Este texto é parte do livro Negros Gigantes: as personalidades que fizeram chegar até aqui, de Alê Garcia]

Aí estão eles. Chegam balançando braços compridos demais, flanando dentro de camisetas falsificadas e gigantescas onde se lê Los Angeles Lakers, Chicago Bulls, Utah Jazz; tacos de madeira apoiados nos ombros e munhequeiras atoalhadas nos pulsos, como se David Robinson fossem. Mal saíram do bairro, mas aparentam terem sido enviados direto de uma quadra de basquete do Brooklyn.

Parecem caminhar em câmera lenta, suor brotando por baixo daquelas peças de roupa de tecido sintético. E aquela é a luz do quase crepúsculo que se infiltra por entre o espaço que suas pernas deixam a cada passo, banhando suas panturrilhas de ouro luminoso e revelando um time de rapazes corpulentos, já ostentando uma formação muscular que só alguns poucos anos mais tarde contribuirá drasticamente para o aumento da taxa de natalidade entre as adolescentes no bairro.

Mas não agora. Agora ainda são garotos cujo único interesse é o de humilhar seus adversários estourando suas latas de óleo com rebates formidáveis e rindo de forma impiedosa. Eles vêm mascando chicletes e vertendo guaraná vagabundo do bico da garrafa. 

Eles estão prontos para começar seu espetáculo do jogo de taco, e eu — que sou magro e pequeno demais aos dez anos, pernas finas, calção de malha, camiseta Sulfabril desbotada, concentrado demais em manter um besouro com as patas desesperadamente viradas para o alto, cachos repletos de cacos de tijolos, cabeça repleta da imagem da minha vizinha da casa em frente — praticamente me estendo sobre as caliças de que é feita a calçada, para apreciar tudo.

Seus corpos têm o ritmo malemolente de um gingado que parece demonstrar algum tipo de comunhão oculta com as ruas. Eles são rápidos e ardilosos, capazes de sacar raps de dentro de seus bonés de abas retas, e são jovens e talentosos. Acham que são algo a se admirar, então estão sempre prontos para dar um show. E naquele ritual que tem menos de concentração do que de marra, eles passam entoando o que parecem ser hinos, Então, quando o dia escurece / Só quem é de lá sabe o que acontece/ Ao que me parece prevalece a ignorância / E nós estamos sós / Ninguém quer ouvir a nossa voz.

O que é que eles estão cantando?, se pergunta o garoto magrelo, cachos repletos de cacos de tijolos? No caso, eu.

Fundado em 1988 na cidade de São Paulo, Racionais MC's é formado por Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay. 
Fundado em 1988 na cidade de São Paulo, Racionais MC’s é formado por Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay. 

Quem vai me responder, sem que eu ao menos formule minha pergunta em voz alta, não é nenhum daqueles garotos negros. É o Zé da Baé: branco, cabelo tigelinha, braços magros passeando livremente dentro de uma camiseta gigante sempre fedendo a mofo, porque ele nunca deixava que ela secasse durante o tempo necessário. Um garoto com algumas obsessões: Sugar Hill Gang, Grandmaster Flash & The Furious Five, Public Enemy, N.W.A., Run DMC, Beastie Boys. E, consequentemente, Thaíde e DJ Hum, Racionais MC’s e tudo o que veio a constituir o rap nacional: suas companhias no seu processo de extravasar dores incompreensíveis aos outros.

Versos impregnados de Brasil

Zé da Baé nunca teve a chance de saber que foi o primeiro a me abrir as portas para o que era Pedro Paulo Soares Pereira e o que era o hip-hop. Nem quando me emprestou suas primeiras fitas K-7, tanto da coletânea na qual Racionais se lançaram, quanto do primeiro trabalho do grupo, o EP Holocausto Urbano. Por causa dele vim a conhecer este sujeito dono de versos impregnados de Brasil. Um cara da periferia.

Um artista que me fez parar para entender o que ele realmente queria dizer quando disse “orgulho negro é uma coisa que assusta o brasileiro”. Ali, ouvi pela primeira. Mais tarde, tive os mais diversos exemplos. E, talvez, o mais notório deles tenha sido dado por outro artista, Wilson Simonal: o crooner, o fenômeno musical capaz de encher estádios nos anos 70, com negros e brancos disputando ingressos para ouvir sua voz.

Como não ficar orgulhoso de si mesmo, da sua excelência, de quem você é, mesmo quando outros insistem que você não é? Simonal foi esta pessoa, repleto de orgulho pelo que ele, homem negro tinha de sobra — talento, carisma absurdo, resiliência em frente aos “nãos” —, e do que fazia com aquilo — uma carreira de sucesso, dinheiro, mansões, carros e mulheres. Mas quem está preparado para um negro orgulhoso de si mesmo, quando historicamente nos ensinam que negros devem ser apequenados, submissos? O Brasil nunca esteve preparado. Por isso, cada vez que uma pessoa negra assim surge, aquele que é considerado brasileiro médio (ainda que em um país com 56% de pessoas negras) — o branco, classe média — se assustam.

A noção de racismo enquanto realidade estrutural do nosso país é relativamente nova. Assim, como naquele momento, era muito nova a possibilidade de conceber que negros não estivessem tão somente mergulhados em um complexo de inferioridade oriundo da escravidão. Em geral os brasileiros, e aí incluídos negros e brancos, tendiam a perceber o racismo como algo existente apenas nos Estados Unidos e na África do Sul, pelas notícias que chegavam do que era o regime do apartheid.  A noção de racismo, naquele momento, se resumia a uma realidade que envolvesse segregação e conflito. E o fato de que estes dois eram supostamente ausentes na sociedade brasileira fazia com que caracterizássemos racismo como preconceito racial — uma liberdade estética, uma fluidez sensorial, aceitável, branda, de que existiam algumas pessoas que, simplesmente, “não gostavam de negros”. 

Como Joel Rufino dos Santos nos conta no livro Saber do Negro (Rio de Janeiro. Pallas, 2015): “Foi nos anos 1970 que a luta organizada contra o racismo desembocou, enfim, num movimento negro de amplitude nacional e claramente destacado de outros movimentos sociais e políticos. (…) Havia desde organizações políticas rígidas (como o Movimento Negro Unificado, o MNU, a mais notória), até instituições semiacadêmicas (como o Grupo André Rebouças, na Universidade Federal Fluminense), passando por centros autônomos de pesquisa histórica e cultural do negro (como o Centro de Cultura Negra do Maranhão, por exemplo).”

A partir dos anos 70, portanto, com a proliferação dos movimentos negros, e um crescimento econômico que gerou uma massa até então inédita de universitários e, na sequência, profissionais liberais negros, falar de orgulho negro, passa a se tornar algo menos inescrutável. 

Joel Rufino dos Santos foi um historiador, professor e escritor brasileiro, tendo sido um dos nomes de referência sobre o estudo da cultura africana no país.
Joel Rufino dos Santos foi um historiador, professor e escritor brasileiro, tendo sido um dos nomes de referência sobre o estudo da cultura africana no país.

Novas formas de expressões urbanas

A partir dos anos 70 a cultura negra urbana passa a desenvolver, através do hip-hop, suas novas formas de música, dança e canto, apropriadas e referenciadas na própria cultura negra — “grafite urbano, break, rádio negro, DJs de clubes que praticavam o chamado sampling (sobreposição de músicas populares com sons do rap e ruídos eletrônicos), scratching (movimentação rápida da agulha sobre sobre o disco) e punch-phrasing (mudança hábil de um prato para o outro).”, como nos conta Douglas Kelner no livro A cultura da mídia (Edusc, 2001). O rap como forma de expressão surge como uma espécie de fórum popular no qual os negros urbanos podem expressar suas experiências, preocupações e visões políticas — por isso, é natural que ele se torne maciçamente popular a partir dos anos 80, período de declínio das condições de vida, cortes nos programas sociais e de negligência em relação aos negros e pobres. Um período de aumento de criminalidade, uso de drogas, grandes índices de gravidez na adolescência e de intensificação das doenças sexualmente transmissíveis.

É para ser cronista tanto do orgulho negro, quanto para falar do país a partir do ponto de vista destas condições que soterram os anos 80, uma perspectiva sob a qual os brasileiros não estavam acostumados — daquele que vive a periferia diariamente — que Pedro Paulo Soares Pereira, mais conhecido como Mano Brown, uma das principais vozes dos Racionais MC’s, está entrando nos nossos ouvidos desde quando ele ainda era um garoto de 18 anos.  Mas já se vão muitas décadas de uma carreira marcada pelo feito de ter guiado o único grupo nacional de rap capaz de vender mais de um milhão e meio de discos oficialmente no Brasil até hoje. Isso sem contar os outros mais de quatro milhões na conta da pirataria.

Mano Brown e Racionais MC’s no puro suco dos anos 80

Este Brasil em que eu conheço Racionais, em que eu conheço Mano Brown, é um país no qual em qualquer mesa de bar você encontrava especialistas — regados a destilados e fermentados — muito certos sob os rumos de uma nação prestes a eleger sujeitos chamados Collor, Afif ou Maluf como os primeiros presidentes diretos de uma nação pós-ditadura. Eu via estes especialistas em mesas de latão nos bares da Restinga, bairro de Porto Alegre onde eu cresci. E, como em qualquer periferia, o que nunca faltou na Restinga foram bares. E aí está um dos motivos de Mano Brown cantar que “periferia é periferia”, um lugar no qual “se quiser se destruir está no lugar certo, tem bebida e cocaína sempre por perto”

Este Brasil em que eu conheço Mano Brown, em 1989, é um país arrastando por uma corrente do peso de quase quatro séculos de escravidão uma herança de desigualdade econômica, repressão social e um racismo estrutural que continua firme até hoje, forte como um verso de rap bem rimado. Um Brasil em que estava vicejando um novo momento do samba cujo terreno de cultivo foram os quintais das casas suburbanas, disputando a hegemonia da black music entre a população negra das classes populares. Neste cenário, muito por obra dos discos de vinil que meu pai — amigo de uma funcionária de uma distribuidora de discos — trazia para casa, eu acompanhava a ascensão do rock nacional. Foi também nesse período de abertura política que muitas escolas de samba começavam a desfilar seu interminável rosário de enredos de crítica social.

O que significa você ser uma criança negra da periferia e ver nascer o rap, com a sua necessidade de fala e tomada da palavra, para vocalizar uma ferida nunca fechada do legado escravocrata e tendo que se fazer relevante, ainda encurralado por uma estrutura de opressão? 

Orgulho negro é uma coisa que assusta o brasileiro

(Mano Brown)

Eu estava vivendo o orgulho negro ao viver em uma comunidade negra como a Restinga e sentindo o orgulho negro crescer em mim, porque estávamos construindo nossa fala, criando nossa própria narrativa. 

Esta construção de nossa narrativa, no entanto, passa a acontecer, nos períodos seguintes, aos trancos e barracos. Acarretado pela derrota de Lula para Collor na eleição de 1989, o Brasil neste momento vive o refluxo dos movimentos sociais nos bairros populares. E os anos decorrentes daí são marcados por uma violência generalizada do Estados contra setores populares e marginalizados.

Vamos listar? Em 02 de outubro de 1992, uma intervenção da Polícia Militar de São Paulo na Casa de Detenção, resultou na morte de 111 detentos. 

Na madrugada de 23 de julho de 1993, oito crianças e adolescentes (dos quais apenas dois com mais de dezoito anos), foram assassinados em frente à Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro. Os assassinos: policiais e ex-policiais. Só um mês depois disso, há o massacre no bairro de Vigário Geral, zona norte do Rio de Janeiro. 

É a crônica desta bestialidade, de quem decide, com calibres em punho, o que é certo ou errado, que os Racionais estão nos contando, desde 1989, desde “Pânico na Zona Sul”. E eles estão nos contando por que não havia mais ninguém interessado em contar:

“Justiceiros são chamados por eles mesmos

Matam humilham e dão tiros a esmo

E a polícia não demonstra sequer vontade

De resolver ou apurar a verdade

Pois simplesmente é conveniente

E por que ajudariam se eles os julgam delinquentes

E as ocorrências prosseguem sem problema nenhum”

Nasce a crônica de uma sociedade

Há uma tensão acumulada na sociedade brasileira, cujos resultados são fenômenos como o arrastão, nas praias cariocas; a violência da rivalidade entre gangues nos bailes funks dos subúrbios; e a disputa entre facções por pontos de venda de drogas, em seus confrontos constantes com a polícia

Coloca aí nesse caldo também um contexto de desemprego recorde, remoções de moradores de áreas urbanas (como nasceu a Restinga), a favelização e o crescimento das periferias e das torcidas organizadas. E é no meio disso tudo que nós vemos o movimento hip-hop ascendendo, como uma referência de identidade da juventude da periferia, que cresce em bairros com índices de assassinatos comparáveis às regiões mais violentas da Colômbia. 

Em São Paulo, o bairro do Jardim Ângela é considerado o mais violento do mundo. E junto com os bairros do Jardim São Luís e do Capão Redondo, configuram o que se denominava como Triângulo da Morte.

Individualismo, tensão, insegurança, desesperança, instinto de sobrevivência: está aí o cenário de um tecido social completamente arregaçado, um cenário caótico, no qual o rap nacional está engatinhando, dando seus primeiros passos nos encontros dos jovens nas estações centrais do metrô em São Paulo. 

O rap se torna a expressão artística sob medida para transmitir as experiências e condições das pessoas negra que viviam nas periferias e, assim, se transformou num poderoso veículo também de expressão política, traduzindo a indignação e frustação dos negros diante da crescente opressão e da diminuição das oportunidades de progresso, quando a simples sobrevivência se torna um problema quase intransponível.

Public Enemy é um grupo de hip hop norte-americano formado em 1982 

Além disso, neste momento o movimento hip-hop absorve um legado importante deixado pela black music que, a despeito da crítica de vários sambistas da época, exerceu grande influência sobretudo na juventude negra e pobre moradora dos bairros populares entre as décadas de 70 e 80.  Este é o palco onde surge o rap crítico, questionando discursos de prosperidade da época, absorvendo as mensagens de Malcolm X e Public Enemy. 

É interessante notar como acontece esta importação de modelos culturais, simbólicos, de comportamento e ideológicos, fundamentais na construção da estética hip-hop no seu nascedouro norte-americano, mas também para o que foi a sua evolução em território brasileiro. A internacionalização crescente da economia brasileira possibilitou esta importação e “a socialização desta importação foi, naturalmente, complexa e variada, gerando incompreensões e intolerância por parte de intelectuais do sistema. Não concedendo ao negro o “direito” de não ser senão negro, esses condenaram a voga black e internacionalista das vanguardas negras. De qualquer jeito, milhares de negros em ascensão frustrada, guetizados no pior setor pago do mercado de trabalho, adotaram Eldrige Cleaver, Malcom X, Stockley Carmichel, Angela Davis e James Badwin como gurus.”, como nos conta Joel Rufino dos Santos no texto A inserção do negro e seus dilemas (Parcerias Estratégicas, número 6, março 1999. Projeto Brasil 2020)

É neste cenário que Ice Blue, Edi Rock, KL Jay e Mano Brown se unem e, inspirados pela fase racional de Tim Maia, formam o Racionais MC’s.

De B.B. Boys a Racionais MC’s

 Foi por causa de artistas como Ice-T, LL Cool J, Run DMC e outros que, no concurso do Asa Branca, em Pinheiros, bairro de São Paulo, Mano Brown, à época chamado D. C. Brown (“Do Capão Brown”, já que ele é originário do Capão Redondo) e Ice Blue, estrearam no palco, como B.B Boys. Os versos já falavam de violência na música “B.B. Boys é Nosso Nome”, B.B. Boys., de Mano Brown e Ice Blue, provavelmente de 1988: “Tem polícia na parada/ Nem se liga na real/ A farda é uma jaula/ Onde só cabe um animal”. Isso tudo sobre uma base rápida, de um disco do rapper Tone Loc.

Enquanto isso, na zona norte de São Paulo, onde a dupla Edi Rock e KL Jay frequentava bailes black, Edi Rock tinha começado a abrir shows para Thaíde & DJ Hum e MC Jack, os grandes nomes da época. O produtor cultural Milton Sales conhecia as duas duplas, e achou que fazia todo sentido juntá-las – além de iniciar um processo de conscientização política delas.

A ideologia esteve presente desde as primeiras vezes que este quarteto se trombou, no apartamento de um alemão chamado Hans, no edifício Copan, centro de São Paulo, para gravar rap, sob o convite de Milton Sales que agitava a cena na época, unindo a rapaziada que frequentava a região da São Bento, antiga meca dos fãs de hip-hop na cidade, e a casa noturna Clube do Rap, na Bela Vista.

A partir desse primeiro encontro começaram a rolar as diversas demos até o convite do selo Zimbabwe Records, em 1988, para que participassem da coletânea Consciência Black Volume 1. E já nessas primeiras gravações apareceriam “Pânico na Zona Sul” e “Tempos Difíceis”. 

Pedro Paulo Soares Pereira, o Mano Brown

Se você perguntar, no entanto, para qualquer um, quem é Pedro Paulo Soares Pereira, certamente a resposta vai ser o silêncio. Agora, pergunte quem é Mano Brown. E muita gente vai lhe dizer que é um dos 100 maiores artistas da música brasileira, segundo a revista Roling Stones.

Originalmente Paulinho Brown, devido ao seu hábito de cantar sobre batidas do James Brown, tornou-se “Mano” através de uma ambiguidade em “Fim de Semana no Parque”, de seu primeiro álbum, Raio X do Brasil, na qual o rapper dizia “Malicioso e realista, sou eu mano, o Brown”.

Klaus Mitteldorf mostrou fotos de Mano Brown em 1997, ano de Sobrevivendo no Inferno
Klaus Mitteldorf registrou fotos de Mano Brown em 1997, ano de Sobrevivendo no Inferno

O rapper nasceu em 22 de abril de 1970 em São Paulo. Filho de dona Ana, negra, falecida em 2016, e de pai branco que nunca conheceu, Brown cresceu na periferia, no bairro do Capão Redondo, extremo sul da cidade de São Paulo. Foi aos 17 anos que escreveu seu primeiro rap, mesmo período em que começou a frequentar o Metrô São Bento, onde aconteceram os primeiros encontros entre os artistas de rap de São Paulo. 

O Ice Blue, a metade da dupla de rap B.B. Boys, era seu amigo de infância, Paulo Eduardo Salvador. Os B.B. Boys participavam de alguns concursos e eventos e chamam a atenção do público, com letras que descreviam o cotidiano violento da periferia. Mano Brown inspirava-se em Thaíde e outros compositores que frequentavam a São Bento.

Thaíde é um dos primeiros rappers brasileiros que ele vê cantar na televisão e que esboça uma crítica social em suas letras. Depois que Brown e Ice Blue se juntam a Edi Rock e KL Jay, o produtor Milton Sales inicia um processo de conscientização política dos rappers. 

Ele dizia que eu tinha de usar meu talento para mudar as coisas, igual ao Bob Marley fez na Jamaica. Lutar pelo oprimido. Era disciplina de esquerda. Ele e Malcolm X foram os caras que me ensinaram as coisas mais importantes de política.
(Mano Brown a respeito de Milton Sales)

“Quando li Malcolm X, senti que era negro mesmo”, disse Mano Brown. “Apesar da minha pele mais clara, de o meu pai ser branco, essa é a minha vida. Levava vida de negro mesmo. Entendi que a gente era apenas uma estatística, por mais que gostasse de se sentir especial. As coisas começaram a fazer sentido. Foi um murro na cara.”, como contou na reportagem Os Quatro Pretos Mais Perigosos do Brasil, da Revista Rolling Stone de dezembro de 2013.

Essa mentalidade já se faz presente desde as primeiras faixas que escreve e grava, como “Pânico na Zona Sul”.  Some este rap aos raps principais de cada um dos quatro discos de estúdio da banda — sem contar os diversos álbuns ao vivo, coletâneas, EPs e singles —, músicas como “Fim de Semana no Parque”, “Capítulo 4, Versículo 3”, “Fórmula Mágica da Paz”, “Diário de um Detento”, “Vida Loka”, “Eu Sou 157”, “Jesus Chorou”, e você entende por que Mano Brown é o principal compositor dos Racionais MC’s e autor dos maiores clássicos do grupo.

Como é que um artista como Mano Brown, de São Paulo, podia ressoar de maneira tão forte em moleques negros de uma periferia, no extremo sul do Brasil? Porque, mesmo após ter gravado o seu primeiro disco, Mano Brown era o cara que passava por dificuldades financeiras que só se aplacaram sete anos depois, com o estouro de Sobrevivendo no Inferno. Estava ali o sujeito que almejava ser como Malcolm X, mas que tinha uma a batalha no dia a dia para sobreviver. Era o tipo de batalha semelhante à batalha de tantas outras famílias negras ali onde eu cresci.

Para Mano Brown foi o rap, e o casamento cedo, aos 18 anos, que o salvaram do crime e de passar fome. Brown se casou com Eliane Dias, hoje na linha de frente dos negócios do grupo. Mas ainda assim, esse era um período tenso para Brown e os demais integrantes dos Racionais que, inflamados com Malcolm X e os Panteras Negras, decidiram se preparar para uma guerra. Compraram armas, aprenderam a lutar, se consideravam subversivos do mundo.

De Holocausto Urbano a Escolha o Seu Caminho

Depois do EP Holocausto Urbano, com suas 6 músicas, Mano Brown e os Racionais MC’s gravam outro EP, Escolha o Seu Caminho. Lançado em 1992, poderia ser resumido em apenas uma palavra: reação. Se no disco interior, o inimigo é “o outro”, neste álbum os Racionais pretendem mostrar que os negros podem ser seus próprios inimigos também, acomodando-se em ideias pré-concebidas de como um negro pobre deve viver e se comportar. E isto fica claro neste diálogo inicial do rap “Negro Limitado”, em que há uma voz que questiona os atos e outra que quer permanecer imobilizada:

“Aí mano, cê tá dando febre, certo, cê tem que ter consciência

Ah mano, que negócio de consciência que nada, mano, negócio de negro

Consciência não tá com nada, o negócio é tirar um barato, morô, mano?

Pô mano, vamos pensar um poucoQue pensar que nada, o negócio é dinheiro e tirar uma onda”

Este é o disco em que a questão racial é tratada de forma mais enfática, e há até um tom professoral nas letras, com Brown e Edi Rock despertando os negros que estão brigando por quase nada e acomodados. 

Sempre avessos à TV, na música “Voz Ativa”, presente neste mesmo disco, os Racionais apontam a televisão como uma das culpadas por deixar a população sem vontade de lutar. O rap é uma ode ao resgate do orgulho e da autoestima do negro. Isto é muito claro em um trecho que nos diz: 

“Acreditarmos mais em nós,

independente do que os outros façam.

Tenho orgulho de mim, um rapper em ação.

Nós somos negros, sim, de sangue e coração”

Este disco traz letras tão diretas quanto o anterior, Holocausto Urbano, expondo toda a insana lógica que é a vida nos bairros pobres de uma grande cidade. Ou seja, minha realidade.

Mas, certamente, foi o seu disco seguinte, Raio X do Brasil, o disco que definitivamente tirou o rap dos guetos e tornou o nome Racionais MC’s uma entidade do gênero no país, abrindo caminho para programas de TV — como o Yo MTV —, programas de rádio e para um sem-número de outros rappers. Porque estava tudo lá: crônicas sobre drogas, violência estatal, preconceito racial e social, tudo dito sem meias palavras ou meias verdades. E, numa comparação entre este e o EP anterior, Raio X é mais bem escrito, com letras mais longas e mais contundentes. E musicalmente, com samples de Curtis Mayfield, Marvin Gaye, The Meters e Tim Maia enriquecendo as bases para suas rimas, mostra uma evolução dos Racionais MC’s também como produtores

É a grande consagração do grupo, principalmente por causa dos raps “Homem na estrada”, “Mano na Porta do Bar” e “Fim de Semana no Parque”, retrato extremamente apurado dos desejos de qualquer criança periférica em se divertir, ainda que o lugar em que vive não ofereça o menor recurso para isso:

“Automaticamente eu imagino
A molecada lá da área como é que tá
Provavelmente correndo pra lá e pra cá
Jogando bola descalços nas ruas de terra
É, brincam do jeito que dá
Gritando palavrão é o jeito deles
Eles não tem videogame, às vezes nem televisão
Mas todos eles têm um dom 
São Cosme, São Damião
A única proteção”

A poética realista do grito-denúncia

É muito notória a forma clara como desde seus primeiros trabalhos, Mano Brown e os Racionais MC’s estabelecem o que vai se tornar a gênese do rap nacional, cujo traço marcante passa a ser o de grito-denúncia do conjunto de injúrias, preconceito e perdas que negros e pobres sofrem cotidianamente no país. E eles já fazem isso no início dos anos 90, captando a experiência brasileira com uma lente muito original, denunciando com consciência explícita a nossa falsa democracia racial. E a importância do que os MC’s dos Racionais fazem — enquanto construtores de uma poética realista, através de uma obra que também é literária, porque é construção linguística mas, que ao ser elemento que se propõe a ser parte de uma criação rítmica, o rap, é mais do que isto — me remete à contribuição de Lima Barreto para uma literatura igualmente de denúncia, porque “produziu um ‘realismo socialista’, porquanto apontou a extinção das classes sociais com única solução para o permanente conflito entre os ‘donos da vida’ e a multidão trabalhadora.”, como nos conta Mário Donato no livro de Oswaldo de Camargo, O Negro Escrito (Imprensa Oficial do Estado. 1987).

Racionais MC's

Mano Brown e os Racionais MC’s foram fundamentais para me fazer contestar a visão cordial e conciliatória com que a sociedade sempre tentou impor o mito da democracia racial. Imagine o que é ser um menino negro na periferia da capital de um estado que sempre glorificou tão somente os imigrantes italiano e alemães como pilares culturais, subjugando a importância dos negros em sua formação. Os quatro membros dos Racionais — e ter o rap como ferramenta educativa e informativa — foram fundamentais para que eu construísse uma imagem mais realista do que significa ser um negro no Brasil. Uma identidade para o negro pobre, periférico, que precisa lutar por seus direitos e ganhar o dinheiro de cada dia: imagem muito distante daquela alegoria do negro alegre e festivo, que se praticava até então e que a mídia sempre adorou nos empurrar. Em contrapartida, os raps dos Racionais sempre trouxeram à tona a imagem de um negro que, embora nestas condições, não deve aceitar a subjugação. Isto é parte fundamental do meu orgulho negro, parte fundamental da construção da minha autoestima. E qualquer ouvinte é capaz de identificar e se sensibilizar com os ecos de um discurso tão forte assim.

Atlântico Negro, livro de Paul Gilroy

Além disso, não é difícil compreender como a identificação com quatro artistas negros periféricos se constitui em um objeto de tamanho fascínio para uma criança igualmente negra e periférica, ainda que naquele momento sem argumentos teóricos para esta explanação. Há a construção de uma importante narrativa cultural que se estabelece ao me ver refletido naqueles homens negros, uma narrativa que, tal qual Paul Gilroy defende em O Atlântico Negro, conta e reconta não somente a história da vitória dos fracos sobre os fortes, mas dos poderes relativos que são desfrutados por diferentes tipos de força. A história do desenvolvimento criativo negro é poderosa, principalmente, porque “demonstra os frutos estéticos e comerciais da dor e do sofrimento e tem um significado especial porque os músicos têm desempenhado um papel desproporcional na longa luta para representar a criatividade, inovação e excelência negras.”

Sobrevivendo no inferno: um dos discos mais importantes de todos os tempos

É paradoxal que, em dado momento, os raps dos Racionais MC’s deixem a periferia em direção aos bairros burgueses, cuja contraposição em relação à favela é apresentado em “Fim de semana no parque”, no qual Brown descreve as “carangas do ano” dos playboys que passaram a ser ouvintes do grupo, em um paradoxo que dura até hoje, mas extremamente inteligível à medida em que a cultura periférica se torna parte da cultura mainstream.

Em contrapartida a esta ascensão, 93 e 94 são os anos em que o grupo sofreu com atentados a tiros exatamente no bairro onde cresci, a Restinga, bem como em Indaiatuba, em São Paulo. 1994 também é o ano em que são detidos pela Polícia Militar durante um show no vale do Anhangabaú, em São Paulo, acusados de incitar o crime e a violência com sua música.

No final de 1997, Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay lançam Sobrevivendo no Inferno, e a partir daquele momento o rap e a música brasileira nunca mais seriam os mesmos. 


É preciso entender o cenário mundial quando este disco foi lançado. Naquele período, o que vicejava na televisão brasileira eram os programas sensacionalistas policialescos. Os cartéis dominavam inúmeros países latino-americanos como os carteis de Cali e Medelín, as favelas cariocas estavam dominadas pelo narcotráfico enquanto o povo favelado se encontrava no fogo cruzado entre polícia e traficantes. Os Estados Unidos privatizavam seus presídios, os conflitos no Oriente Médio começavam se intensificar com a intervenção do imperialismo enquanto o fundamentalismo islâmico ganhava força. E no Brasil, a repressão se dava dentro de estrutura racista que atingia o povo negro, pobre e periférico. Era sobre tudo isso que os Racionais cantavam o grito de resistência da periferia. A chacina do Carandiru foi tema da principal música do álbum, “Diário de Um Detento”:

“Cada detento uma mãe, uma crença
Cada crime uma sentença
Cada sentença um motivo, uma história de lágrima
Sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio
Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo
Misture bem essa química
Pronto: eis um novo detento”

Na combinação de uma história de séculos de escravatura, exclusão e segregação social, racismo institucional combinado com o momento econômico, os conflitos de classe e racial, o papel de controle social cumprido pelos presídios era e ainda é de transformar os muros da cadeia em masmorras do esquecimento, para guardar “o que o sistema não quis” e esconder “o que a novela não diz”. 

Sobrevivendo no Inferno é o primeiro trabalho lançado pelo selo próprio do grupo, Cosa Nostra, e vendeu mais de um milhão de cópias.  A primeira faixa do disco é uma versão para “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben Jor, e é primeira regravação registrada pelos Racionais MC’s até então. 

É um trabalho repleto de referências a trechos bíblicos, já começando pela capa, com sua cruz em fundo preto, e a frase do Salmo 23, capítulo 3: “refrigere minha alma e guia-me pelo caminho da justiça.” A música “Capítulo 4, Versículo 3”, além do título, traz essa referência bem presente também em verso:

“E a profecia se fez como previsto
1997 depois de cristo
A fúria negra ressuscita outra vez
Racionais, capítulo 4, versículo 3”

Mas, o que é isto o que os Racionais estão propondo? Eu sou só um adolescente absorvendo o que ícones negros gigantes que admiro estão me oferecendo. Muito além de uma compreensão do que estas referências bíblicas querem me dizer, o que mais me impactou neste trabalho foi a sofisticação literária da sua proposta — o contraponto do sofrimento de um Jesus Cristo que nos é imposto em uma falsa branquitude em relação ao sofrimentos de negros periféricos no Brasil, todos os dias. 

Deste alinhamento ou metáfora do cristianismo, pulamos para “Fórmula Mágica da Paz”, que contrapõe versos que descrevem uma realidade dura com refrãos que expressam sonho de mudança por meio de um elemento mágico. É um rap que retrata a vida de alguém sem perspectiva na periferia, mas que não desiste de encontrar uma solução, ainda que por uma fórmula que já não é mais pela fé:

Eu vou procurar, sei que vou encontrar, eu vou procurar,

Eu vou procurar, você não bota mó fé, mas eu vou atrás

(Eu vou procurar e sei que vou encontrar)Da minha Fórmula Mágica Da Paz.”

Os anos 2000, novas possibilidades sonoras

Em 2002, álbuns diversos e tantos shows feitos, o grande tema é o disco Nada Como Um Dia Após o Outro Dia. No mesmo ano e em 2006, você só têm coletâneas ao vivo: Racionais ao Vivo e 1000 Trutas 1000Tretas, respectivamente. E é provável que um dos símbolos mais relevantes deste novo momento do Mano Brown e dos Racionais MC’s seja a emblemática entrevista que Brown concedeu à revista Rolling Stone em 2009, na qual o rapper já expõe um discurso mais maleável, contando a vontade de querer deixar de ser um refém da imagem que ele mesmo ajudou a disseminar. Brown ainda concede entrevistas ao Jornal da Tarde, em 2006, e a programas da TV Cultura, como Ensaio, em 2003 e o Roda Viva, em 2007. Neste mesmo período, se tornam mais comuns as apresentações dos Racionais em clubes de classe média e alta, pelo alto cachê pago nestes eventos.

Neste intervalo, a criação da produtora Boogie Naipe, sob comando de Eliane Dias, esposa de Mano Brown e prima de Ice Blue, profissionaliza ainda mais os negócios do grupo. Eles também passam a contar com uma assessoria de imprensa e, em 2010, Mano Brown grava uma participação na faixa “Umbabarauma”, de Jorge Ben, numa campanha promocional da Nike para a Copa do Mundo de 2010. Uma das justificativas de Brown — porque, no Brasil, sempre acham que artistas vindos da periferia precisam de justificativa para ascenderem — foi o alto cachê pago, que o permitiu comprar a sede da sua produtora, além da oportunidade de gravar com seu ídolo, Jorge Ben. 

Muita coisa mudou no Brasil desde Nada Como Um Dia Após o Outro Dia. Em 2014, doze anos se passaram desde seu último disco de estúdio, e o grupo mais importante de rap no país nunca esteve perto do silêncio. No período, tivemos a chance de perceber e ouvir todos os clichês eleitorais de como as coisas se tornaram mais ricas, justas e distribuídas. Cores e Valores disco que os Racionais MC’s lançam neste ano, é o relato intrínseco de que “somos o que somos” e que nosso futuro é nebuloso, pelo menos em questões sociais e étnicas — como continuamos vendo muito bem hoje.

Mas o rap, em 2014, se tornou um dos estilos mais populares no Brasil, independente da classe social. Projota surge rimando quarenta reais com Racionais e tocando seu rap de violão na trilha sonora da novelinha Malhação, da Globo.

Racionais MC’s, que ganhou status de celebridade em festivais como Lollapalooza, Virada Cultural e apresentações na MTV, ganhou outro público, elevou seu status e ganhou uma merecida “carteira cheia de dólar”. E tudo isso se reflete em Cores e Valores, que, com cerca de 32 minutos, em 15 músicas interligadas em poucos segundos e aspecto de mixtape, é igualmente polêmico com o histórico do grupo.

A sonoridade mudou. Temos um som bastante influenciado pelo hip-hop norte-americano que foge do rap cru que sempre marcou a trajetória dos Racionais. Pega um som como O Mau e o Bem, provavelmente a única balada de verdade feita pelo grupo em sua discografia, com seus toques de Sampa Crew e elementos que a colocariam dentro de um lounge de desfile de moda ou num momento romântico na balada, embora com uma letra que é uma espécie de radiografia da trajetória do grupo.

Independente das divisões de opinião sobre este disco, ele abre o precedente pra um olhar mais amplo que deve ser dado a este grupo tão importante: será que o público fiel que os abraçou em seus momentos mais críticos e políticos se manteve junto nesta nova abordagem sonora?

Racionais MC's

Será que o público — além de mim, admirador fiel — permanece abraçando a obra de Mano Brown e dos Racionais MC’s, os “quatro pretos mais perigosos do Brasil”, reconhecidos em sua importância ao ter o disco Sobrevivendo no Inferno incluído na lista de leituras obrigatórias do Vestibular 2020 da Unicamp, ao lado de nomes como Luís de Camões e Ana Cristina Cesar?

História, sociologia, antropologia: tudo para explicar o mais importante grupo de rap do Brasil

A potência e o sucesso dos Racionais MC’s devem-se à capacidade que esse grupo tem de fazer reverberar uma obra artística de qualidade indiscutível, em conjunção com dinâmicas intrínsecas ao movimento hip-hop. 

Eu estou certo de que são meus irmãos, sim, estes quatro artistas capazes de compor uma obra que é uma das experiências mais bem-sucedidas nas últimas décadas. Estes quatro sujeitos negros que sempre tomaram posições artísticas por meio de opiniões e rupturas, musicais e política.

O então ineditismo e a potencialidade das formas musicais e literárias presentes no rap dos Racionais MC’s surgiram em um contexto político e social infelizmente propício a uma manifestação que só poderia ser explicitada da forma como Mano Brown e os Racionais conseguiram: com grandiosidade, com virulência, com imponência e causando desconforto, muito desconforto.

Ainda que eu tenha falado sobre os elementos sociais e cronológicos que relacionam o nascimento do hip-hop no Brasil na sequência do surgimento do movimento originário nas periferias norte-americanas, é preciso deixar claro, por mais que isto pareça redundante, que o hip-hop no Brasil nasce como um movimento de resistência. Há muita história, sociologia e antropologia entre um fato e outro, mas simplificando: a transição do negro escravizado para o negro favelado, fez com que esses sujeitos se tornassem, mais uma vez, marginalizados perante a sociedade brasileira. A abolição foi só um status. O hip-hop, portanto, se consolida como movimento de resistência porque potencializa aqueles cujas vozes não eram ouvidas.

Os Racionais e Mano Brown surgiram para potencializar as suas vozes e as de outros. Dado o momento político, social e econômico em que continuamos vivendo, não resta dúvida da necessidade de que se mantenham condições para que continuemos a criar e para que possamos ter sempre acesso a um discurso e uma realização artística tão relevante e impactante quanto a que Mano Brown e os Racionais MC’s têm nos presenteado há mais de trinta anos.

Existir um grupo como o Racionais MC’s e um artista como o Mano Brown foi fundamental para eu acreditar em contestação e em cobranças sociais. E na potência e na grandiosidade negra. 

Mano Brown foi fundamental para eu me sentir o negro perigoso — e, portanto, poderoso —, como aqueles quatro negros dos Racionais MC’s mostraram e mostram tantas vezes ser. 

[Este texto é parte do livro Negros Gigantes: as personalidades que fizeram chegar até aqui, de Alê Garcia]