Ao pensar em identidades femininas negras como referências da música, imediatamente pensamos naquelas que estão no palco. Desde nomes já detentores de grandes públicos, como IZA, Alcione, Negra Li e a saudosa Elza Soares, até artistas igualmente fenomenais, mas ainda em construção de públicos maiores, como Larissa Luz, Mc Tha, Luedji Luna, Liniker entre outras. E elas são alguns dos bons motivos que nos fazem ficar ainda mais felizes com a crescente representatividade, embora isto nada nos revela sobre se, de fato, existe um progresso realmente efetivo como consequência dessa crescente. Ainda não temos a resposta se a carne mais barata do mercado continua sendo a carne negra.
Por falta de pesquisas orientadas para as questões étnicos-raciais no mercado musical, é impossível aprofundar os debates sobre a relevância da produção artística e também do envolvimento corporativo de pessoas negras no segmento musical. Entretanto, quando interseccionamos a questão – isto é, envolvemos mais fatores – e observamos através da perspectiva de gênero, um relatório do ECAD de 2022, nos concede pistas importantes sobre qual pode ser a situação das mulheres cantoras quando observa-se que, em termos de remuneração através do Direito Autoral, apenas 14,9% das mulheres recebem, contra os 85,1% dos homens.
Embora seja um orgulho carregar o legado da musicalidade negra como um elemento cultural que marca a identidade africana, da qual todas nós afro-brasileiras somos descendentes, nós mulheres negras, quando decidimos seguir a carreira musical, precisamos começar a ser valorizadas financeiramente.
Sem uma análise étnico-racial essa estatística já é um absurdo, por isso é válido questionar: para além da exotificação dos modos com que pessoas negras fazem música, quando essas pessoas serão efetivamente remuneradas pelos seus trabalhos?
Mas, para além disso, quantas dessas mulheres negras sabem como ir atrás desse dinheiro e quantas delas são auxiliadas por outras pessoas negras de dentro da indústria musical? Quais são as referências que estão fora do palco, onde estão as mulheres negras produtoras musicais e fonográficas, gerenciadoras de Artistas&Repertórios, entre outras profissões que compõem a indústria musical?
Muito distante da representação brasileira.
Relembremos que, segundo o IBGE (2019), 56,10% da população brasileira é formada por negros (pretos e pardos). Mas estejamos cientes do fato de que somente 4,9% dos cargos de chefia na indústria musical são ocupadas por esta população, como aponta o Instituto Ethos (2019) em pesquisa realizada nas 500 empresas de maior faturamento do país. Enquanto que a presença nos demais cargos pode ser ainda mais incerta, sendo de 0% a 15%, como observa Leo Feijó em sua pesquisa Diversidade na Indústria da Música no Brasil: um olhar sobre a diversidade étnica e de gênero nas empresas da música (Dialética, 2022).
Então, é muito simples concluir que toda artista negra que tem a pretensão de seguir a carreira musical, adota, mesmo que sem pretensão, uma atitude que é orientada para razões funcionais, pedagógicas ou morais de existência e sobrevivência. Porque vivemos em uma realidade de racismo que é estrutural, como conclui Silvio Almeida, em seu livro Racismo Estrutural (Jandaíra, 2020).
Como exemplo, podemos citar a própria música da Luedji Luna “Um Corpo no Mundo” do álbum de mesmo nome lançado em 2017, em que ela canta:
Eu sou um corpo/ Um ser/ Um corpo só/ Tem cor, tem corte/ E a história do meu lugar/ Eu sou a minha própria embarcação/ Sou minha própria sorte/ E Je suis ici, ainda que não queiram não
Quando Luedji canta “Je suis ici” (Eu estou aqui), revela que toda presença negra é, de algum modo, “ainda que não queiram não”, a reivindicação de um espaço que, estruturalmente, não existe.
Por ora, acompanhemos os movimentos históricos de Paula Lima, primeira mulher negra Presidenta da UBC (União Brasileira de Compositores). A inovadora produção de som da Gilvana Viana. A maestria em
coordenar concertos de Sarah Higino. As descobertas incríveis da curadoria de Nathalia Grilo.
E trabalhemos para continuar construindo e desvelando caminhos para vivenciarmos as manifestações de novas realidades que os ouvidos e olhares das mulheres negras são capazes de produzir.
