15.08.2024 Ícone da categoria

Nossas impressões iniciais de “Cidade de Deus: a luta não para”, nova série da HBO

A nova série, com direção geral de Aly Muritiba e lançamento em 25 de agosto na Max, expande o legado do filme, explorando a evolução da comunidade.

Nossas impressões iniciais de “Cidade de Deus: a luta não para”, nova série da HBO

“Cidade de Deus”, do grande escritor Paulo Lins, é um verdadeiro clássico da literatura. Não só brasileira. Um livro fundamental para compreensão do nosso país e que, ficcionalmente, constrói uma intrincada teia de personagens, narrativas e ações que, bebendo da realidade, concebem uma obra profundamente sofisticada e rica. E, realização das realizações, em 2002, Fernando Meirelles não só conseguiu fazer uma das adaptações mais bem sucedidas da cinematografia ao levar a história para as telonas, como deu luz ao filme que é participante indispensável das listas de obras do cinema mais importantes de todos os tempos. Mundialmente falando.

Como dar prosseguimento a estas narrativas tão fortes, que compreendem tanto das particularidades dos mecanismos que regem as mais profundas estruturas brasileiras? Como fazer isso correndo tantos riscos, sem proselitismo político, sem condescendência social, sem ceder a clichês e construções imagéticas e simbólicas extremamente delicadas e perigosas para as minorias sociais?

Como você retrata, com o hiperrealismo que é próprio da obra, a evolução de uma comunidade como Cidade de Deus, sendo relevante e se conectando com a contemporaneidade? E, ao fazer isso, não macular um nome e uma obra tão fundamentais para a cultura?

É claro que Aly Muritiba tinha um grande desafio em suas mãos. E, por considerar o que nós, da Casablack, pudemos ver no lançamento global de “Cidade de Deus: a luta não para”, nova série da HBO que teve seu evento realizado nesta quarta-feira, 14 de agosto, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, ele se saiu magistralmente bem nesta missão.

Incrível é a menor síntese possível do que pude ver do início desta saga em 6 capítulos que todos poderão aproveitar a partir do dia 25 de agosto no Max, a plataforma de streaming da Warner e dos sucessos da HBO, que assina a produção.

A nova série, “Cidade de Deus: a luta não para”, começa evocando um certo déjà vu, com cenas iniciais que remetem ao clássico filme de 2002. Lá estão o samba, a galinha correndo para escapar do almoço e a faca sendo amolada, ecoando o início do longa de Fernando Meirelles. Mas rapidamente, a trama se desdobra em novas direções, com Buscapé (Alexandre Rodrigues), agora um homem feito que atende pelo nome de Wilson, retomando seu papel como narrador com sua voz suave e afiada: “nos últimos 20 e poucos anos, essa tem sido minha rotina na cidade maravilhosa. Eu saí da favela, mas a favela não saiu de mim. De lá para cá o bicho pegou no Rio de Janeiro”.

As palavras de Buscapé, agora um fotojornalista veterano, pontuam uma narrativa que conecta passado e presente, fazendo o elo entre o filme e esta nova série da HBO. Esta produção não é apenas uma continuação; é uma expansão, aprofundando a análise da vida na Cidade de Deus e trazendo à tona tanto as dificuldades quanto as vitórias da comunidade.

Neste novo capítulo, dirigido por Aly Muritiba, há um esforço consciente para abordar a realidade da favela de forma mais complexa e menos estereotipada. A série reconhece o legado de segurança e estabilidade financeira ainda em falta, mas também celebra conquistas, como a presença de uma associação de moradores ativa, uma cena cultural pulsante e a criação de laços afetivos sólidos. Como Alexandre, o Buscapé, coloca: “Os personagens épicos [do original] voltam, mas dando a possibilidade que o público entenda quem são essas pessoas. É um conteúdo que não foi abordado no filme ‘Cidade de Deus’”.

A nova abordagem de Muritiba se destaca por um foco maior nos efeitos da violência do que na violência em si. Como o diretor já explicou em entrevista: “Me interessa mais o efeito da violência do que a violência. Há mais foco em como uma troca de tiros impacta na vida de uma trabalhadora que precisa se deslocar para a Zona Sul do que o tiro pegando na carne de alguém. Tenho mais interesse no luto da mãe que perdeu o filho do que na morte do rapaz em si. É por isso que a nossa violência está presente, mas é menos gráfica do que em outras produções. Porque não estávamos interessados em reiterar esse aspecto. A câmera está apontada para outro lugar”.

Esse enfoque torna a série intensa, mas com uma tensão mais psicológica do que física. A ação está presente, mas a violência gráfica é reduzida, deixando espaço para um desenvolvimento mais profundo dos personagens e suas relações.

Retorno e evolução dos personagens

Entre os rostos familiares que retornam à série estão Roberta Rodrigues, como Berenice, e Edson Oliveira, que volta como Barbantinho, o fiel amigo de Buscapé desde a infância. Barbantinho, agora presidente da associação de moradores, tenta se eleger vereador, tornando-se uma figura respeitada na Cidade de Deus.

Buscapé se tornou um reconhecido fotógrafo do maior jornal do Rio de Janeiro. Imagem: Divulgação
Buscapé se tornou um reconhecido fotógrafo do maior jornal do Rio de Janeiro. Imagem: Divulgação

Roberta Rodrigues, por sua vez, interpreta Berenice, uma liderança negra que ganha mais destaque na série. A personagem, inspirada por comparações com a vereadora Marielle Franco, foi apontada como uma figura de inspiração, embora a atriz prefira uma perspectiva diferente, como já falou em entrevista, por respeito à memória de Marielle: “Não gosto nem de dizer que tem relação com a Marielle, acho que poderia ser desrespeitoso da minha parte. Marielle só não está presente porque a vida dela foi ceifada. Aqui conto a história de uma mulher que vive, pois se a gente morre a gente não continua contando a história”.

Roberta enfatizou a importância da sobrevivência de sua personagem como um símbolo de resistência e inspiração: “Até conversei com diretores e executivos e disse que não aceitava que a Berenice morresse [no enredo], não posso mostrar para as meninas pretas e para as pessoas da periferia que se elas decidem revolucionar e batalhar pelos direitos vão morrer. Não quero mais isso. Ela vai viver, contar a história, descobrir coisas. A arte tem o poder de transformar. Temos o direito de viver”.

Novos conflitos

O grande conflito na Cidade de Deus em 2004, época em que a série se passa, é protagonizado por Bradock (Thiago Martins, o “Lampião” do filme original), que deixa a prisão com a ajuda de sua advogada e companheira Jerusa (Andreia Horta). Ambiciosa, Jerusa desencadeia uma disputa pelo controle do tráfico, que antes estava nas mãos de Curió (Marcos Palmeira), um patriarca do crime que busca evitar conflitos armados. Thiago Martins, que inicialmente havia decidido não fazer mais papéis ligados à criminalidade, reconsiderou ao receber o convite: “Eu não ia fazer o ‘Cidade de Deus’ em 2002, com 12 anos, tinha sido aprovado nas oficinas, mas ninguém me avisou e eu perdi os processos. Meu papel era Caixa Baixa 2 (ou seja, um personagem mais coadjuvante, sem nome), mas acabei virando o Lampião e 20 anos depois eu virei o Bradock”.

Braddock, o Lampião do filme original, interpretado por Thiago Martins e Jerusa, personagem de Andreia Horta. Foto: Divulgação
Braddock, o Lampião do filme original, interpretado por Thiago Martins e Jerusa, personagem de Andreia Horta. Foto: Divulgação

A série também introduz personagens femininas fortes e complexas, como Jerusa, uma advogada sem escrúpulos, e Lígia (Eli Ferreira), uma jornalista investigativa. Outra personagem de destaque é Cinthia (Sabrina Rosa), que retorna após ter sido vítima de Zé Pequeno no filme original. Agora, Cinthia emerge como uma líder na comunidade, representando as mulheres que carregam a esperança e a resiliência nas favelas: “A maioria das comunidades são matriarcais. A Cinthia representa a mãe esperançosa que quer dar oportunidade para o filho, a figura que mostra que a vida tem outras possibilidades”.



Apesar das diferenças, “Cidade de Deus: a luta não para” compartilha um objetivo com o filme original: alcançar reconhecimento internacional. Silvia Fu, diretora sênior de conteúdo de ficção da Warner Bros. Discovery, já expressou essa ambição: “É um lançamento mundial, com investimento de marketing tal qual as séries americanas têm fora do Brasil. A qualidade da produção é irretocável e há uma equipe americana que já assistiu e diz que há potencial em atingir público. O nosso sonho é atingir o que o filme atingiu”.

“Cidade de Deus: a luta não para” é uma obra que consegue, com maestria, dar continuidade ao legado deixado pelo filme original, mantendo-se fiel à essência da narrativa e, ao mesmo tempo, trazendo novas camadas de profundidade e relevância à história. A série demonstra uma qualidade técnica impressionante, com uma direção cuidadosa de Aly Muritiba, que equilibra habilmente o respeito às origens com a necessidade de inovar. A cinematografia é de altíssimo nível, capturando a complexidade da vida na favela com um realismo que evita clichês, enquanto o roteiro oferece uma narrativa que se conecta profundamente com as questões contemporâneas do Brasil. A trama é rica em detalhes, explorando as dinâmicas sociais e emocionais dos personagens de maneira a engajar o público em todos os episódios. A produção também se destaca pela sua capacidade de dialogar com o público internacional, sem perder sua autenticidade brasileira. Em suma, “Cidade de Deus: a luta não para” não só faz jus ao seu predecessor, mas também se estabelece como uma obra fundamental na produção audiovisual brasileira, reafirmando a capacidade do país de criar conteúdo de alta qualidade que ressoa tanto local quanto globalmente.