O resgate das narrativas brasileiras de horror

Um mergulho na história esquecida do terror brasileiro, entre modernistas, realistas e vanguardas.

O resgate das narrativas brasileiras de horror Lygia Fagundes Telles é uma das autoras presentes na coletânea

O lançamento de Tênebra: narrativas brasileiras de horror [1900–1949], organizado pelos pesquisadores Júlio França e Oscar Nestarez, chega como um marco no esforço de tirar das sombras uma tradição literária muitas vezes invisibilizada: o horror brasileiro. A coletânea, publicada pela editora Fósforo, reúne 38 histórias de autores que vão de Clarice Lispector a Lima Barreto, de Lygia Fagundes Telles a Patrícia Galvão, demonstrando que o terror sempre esteve presente em nossa literatura, ainda que empurrado para as margens do cânone.

O horror como tradição soterrada

A história da literatura nacional costuma associar nomes como Mário de Andrade, Rachel de Queiroz, Érico Veríssimo ou Clarice Lispector ao modernismo, ao realismo ou ao naturalismo. Mas o que Tênebra evidencia é que esses mesmos autores também exploraram o sombrio: narrativas góticas, fantásticas, de crimes ou de suspense, publicadas em revistas, jornais e coletâneas, muitas vezes tratadas como curiosidades menores.

Esse segundo volume amplia o projeto iniciado com Tênebra [1839–1899], que já havia mostrado que desde o século XIX o Brasil produzia histórias macabras. Agora, com o recorte de 1900 a 1949, os organizadores revelam como o horror dialogava com as vanguardas artísticas do século XX, os humores sociais das Guerras Mundiais e os conflitos internos de uma sociedade em transformação.

Escritoras, denúncias e monstros

Um dos pontos mais relevantes do livro é a presença de escritoras. Dinah Silveira de Queiroz, Júlia Lopes de Almeida, Francisca S. Queiroz e Patrícia Galvão encontraram no horror um espaço criativo para romper fronteiras de gênero literário e social. Suas histórias, ao lado das de autores como João do Rio, Monteiro Lobato e Lúcio Cardoso, demonstram que o terror brasileiro foi também uma ferramenta de denúncia social, crítica política e elaboração do grotesco cotidiano.

Vampiros, curupiras traiçoeiros, mulas sem cabeça, padres tarados, freiras cruéis e senhores de escravos: os personagens reunidos em Tênebra revelam o quanto as narrativas macabras captaram o grotesco nacional, costurando o imaginário popular com as dores e contradições do país.

O horror no Brasil: um panorama histórico

Embora marginalizado, o horror sempre se manifestou no Brasil. Alguns pontos de destaque dessa tradição:

  • Aluísio Azevedo e Lima Barreto: incorporaram o sombrio em contos que uniam crítica social e atmosferas perturbadoras.
  • Monteiro Lobato: conhecido pela literatura infantil, mas cujos livros Urupês (1918) e Cidades Mortas (1919) trazem descrições grotescas e cenários de decadência.
  • Lygia Fagundes Telles: estreou em 1938 com Porão e Sobrado, obra que já demonstrava a inquietação e o mistério urbano.
  • Clarice Lispector: reconhecida pelo existencialismo, mas que também navegou em atmosferas de estranhamento e sombras.
  • R. F. Lucchetti: embora seu auge venha nas décadas seguintes, já nos anos 1940 iniciava o caminho que faria dele um dos grandes nomes do pulp brasileiro.

Esse percurso mostra que o horror nacional não era apenas entretenimento, mas um reflexo das ansiedades históricas, políticas e sociais, expresso em contos que misturam o fantástico com a crônica do real.



Horror como patrimônio cultural

O resgate de Tênebra é estratégico porque reintegra o horror ao patrimônio cultural brasileiro. Ele evidencia que o gênero, muitas vezes relegado a nichos populares, foi experimentado por alguns dos maiores nomes da literatura. E mais: serviu como espaço de empoderamento para mulheres, como laboratório estético para vanguardas e como forma de denúncia contra as mazelas de uma sociedade desigual.

Como afirma o escritor Samir Machado de Machado, “[Tênebra] é um baú de tesouros repleto de maníacos, bruxas demoníacas, ciúmes doentios, padres tarados, freiras cruéis, curupiras traiçoeiros, mulas sem cabeça, fantasmas e, o mais brasileiro dos horrores, o senhor de escravos”.

Autores presentes na coletânea

Adelpho Monjardim | Afonso Arinos | Alberto Rangel | Alcides Maia | Amélia Beviláqua | Carlos de Vasconcelos | Carmem Dolores| Chrysanthème | Clarice Lispector | Coelho Neto | Cornélio Penna| Delminda Silveira de Sousa | Dinah Silveira de Queiroz | Erico Verissimo | Euclides da Cunha | Francisca S. Queiroz | Gastão Cruls | Gomes Netto|Gonzaga Duque | Graciliano Ramos | Herman Lima | Hugo de Carvalho Ramos | Humberto de Campos | João Alphonsus de Guimaraens | João do Rio | João Simões Lopes Neto | Júlia Lopes de Almeida | Lima Barreto | Lúcio Cardoso | Lygia Fagundes Telles | Mário de Andrade | Medeiros e Albuquerque | Monteiro Lobato | Papi Júnior | Patrícia Galvão (King Shelter) | Rachel de Queiroz | Rodrigo Octávio | Xavier Marques

Ficha técnica

Título: Tênebra: narrativas brasileiras de horror [1900–1949]
Autores: Vários
Organização: Júlio França e Oscar Nestarez
Capa: Equipe Fósforo
Ilustrações: Eduardo Belga
Formato: 16 x 23 cm | Páginas: 432
ISBN: 978-65-6000-129-9 | E-book: 978-65-6000-130-5
Preço: R$ 119,90 (e-book R$ 83,90)
Data de lançamento: 01/10/2025
Editora: Fósforo