27.05.2024 Ícone da categoria

Retrato sensível de uma artista pioneira

O documentário "Diálogos com Ruth de Souza", de Juliana Vicente, é celebração de ancestralidade e continuidade do legado da atriz.

Retrato sensível de uma artista pioneira Documentário Diálogos com Ruth de Souza, de Juliana Vicente

Para realizar o documentário Diálogos com Ruth de Souza, a cineasta Juliana Vicente filmou vários encontros com a protagonista ao longo de dez anos. Como condensar tudo isso em um longa que dura menos de duas horas? Tarefa impossível, assim como resumir toda a grandeza dessa artista pioneira. Pois uma das escolhas mais acertadas da obra é não reduzir Ruth para caber em uma biografia tradicional, mas sim tecer histórias que vão se entrelaçando em um retrato sensível da atriz.

Trecho da obra 'Diálogos com Ruth de Souza'. Na cena em questão, a atriz homenageada dialoga com Juliana Vicente, diretora da produção.
Trecho da obra ‘Diálogos com Ruth de Souza’. Na cena em questão, a atriz homenageada dialoga com Juliana Vicente, diretora da produção.

E a diretora compartilha com o público parte dessas conversas de maneira carinhosa – respeitosa, mas não distante; ao contrário, é um contato que busca a intimidade e o inusitado e que nos brinda com cenas descontraídas, como aquela em que Ruth usa óculos escuros e diz, aos risos, que é “simpática”. 

Além de ser a narradora que detalha impressões das interações entre elas, Juliana aparece em cena e transita bem entre a confessa admiração pela entrevistada e a curiosidade diante de temas sobre os quais ela não tem interesse em dividir, como sua vida amorosa. Boa parte da beleza do filme está justamente em deixar entrever as lacunas, os esquecimentos e os silêncios que também dizem alguma coisa sobre Ruth e que traduzem a própria natureza do diálogo, esse acesso sempre limitado ao que o outro permite revelar, consciente ou inconscientemente.

Como é de se esperar de um representante do gênero, o documentário aborda os grandes feitos da artista veterana. Um desses momentos históricos é sua estreia profissional, na peça “O Imperador Jones”, de Eugene O’Neill, em 1945. Foi com essa montagem que ela se tornou a primeira atriz negra a se apresentar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, juntamente com os demais integrantes do Teatro Experimental do Negro, grupo liderado por Abdias do Nascimento.

A atriz Ruth de Souza como a escrava Sabina, em “Sinhá Moça” (1953), filme pelo qual disputou o Leão de Ouro
A atriz Ruth de Souza como a escrava Sabina, em “Sinhá Moça” (1953), filme pelo qual disputou o Leão de Ouro

A própria Ruth, que faleceu em 2019, aos 98 anos, forneceu material de arquivo para o filme, já que costumava guardar recortes de jornais que noticiavam os destaques de sua longa carreira. Um desses marcos foi sua indicação ao Leão de Ouro — a primeira de uma atriz brasileira —, no Festival de Veneza, em 1954, por seu papel em “Sinhá Moça”, dirigido por Tom Payne.

O documentário, no entanto, não destaca só as conquistas: os desabafos também fazem parte da narrativa, seja sobre a vez em que quase perdeu uma bolsa de estudos na Fundação Rockefeller, nos Estados Unidos, por Abdias não querer que ela deixasse o TEN ou sobre sentir que não foi tão valorizada ao longo de sua trajetória, inclusive financeiramente.

Sua primeira protagonista da TV, por exemplo, traz lembranças agridoces e revela que o preconceito partia inclusive de colegas de trabalho: o nome de Ruth, que interpretava a Cloé da novela “A Cabana do Pai Tomás”, exibida pela Globo em 1969, deixou de ter destaque nos créditos depois de queixas de outras atrizes. 


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Esse seria só mais um episódio violento para Ruth, que precisou lutar contra papéis estereotipados em toda a sua carreira e antes mesmo de ingressar no meio artístico, já que, ainda criança, ouviu da patroa de sua mãe que “não existia atriz preta”. Mas ela provou que existia e foi além: sua perseverança no ofício que exercia com tanta maestria abriu caminho para que outros atores negros também tivessem oportunidades à altura de seus talentos no teatro, no cinema e na TV. 

E “Diálogos” reconhece isso desde o princípio, de uma maneira poética, ao costurar a narrativa com trechos de ficção em que Ruth (interpretada pelas atrizes Dani Ornellas e Jhenyfer Lauren) se encontra com as Yabás, as orixás femininas. São cenas silenciosas e muito bonitas, que, aliadas aos textos que abrem e fecham o filme, deixam a impressão de que a obra se propõe a ser mais que um registro estático da memória. Em vez disso, é uma celebração ao legado de Ruth, ao mesmo tempo ancestralidade e continuidade. 

Confira o trailer: