As raízes negras têm sido roubadas há muito tempo. Tudo o que resgatamos hoje tem como fonte principal a contracolonialidade exercida pelos que vieram antes de nós; aqueles que sobreviveram na clandestinidade e confiaram às gerações seguintes as memórias que conseguiram preservar dos tempos em que existiam livremente.
Desde então, as palavras mudaram. Ganharam novas pronúncias, novos significados. Os cantos são entoados em outro tom, as histórias são protagonizadas por novos personagens e ganham novos começos, meios e fins. Não há nada de romântico nesta dança, nesse jogo de cintura que nos manteve vivos até hoje.
Distantes da filosofia que valoriza o movimento, a circularidade, a corporeidade e o espírito, somados das algemas e chicotes do nosso tempo, acabamos aderindo aos ideais daqueles que nos tiraram o direito de cultivar os nossos. Neusa Santos Souza diz que tornar-se negro, o vir-a-ser, está diretamente ligado ao rompimento com esses ideais construídos para nós por outras mãos que não as nossas.
Esse rompimento possibilita a construção de novos caminhos e critérios de sucesso, baseados em nossa própria identidade, delineados pelo nosso próprio discurso. É isso que acredito que Liniker faz em seu novo álbum, Caju, explorando seus anseios românticos, sua potência de existir e amar à sua própria maneira.
“Me escrevo essa carta em primeira pessoa
Pelo exercício de me ver assim, livre
Nessa estrada longa, a um destino que eu ainda não sei como será Mas que acredito veementemente
Porque agora eu aprendi a andar depois de ficar de pé”
[Take your time e relaxe]
Com uma sensibilidade incontestável nas letras, a cantora e compositora se permite vislumbrar vivências e relações baseadas em seus próprios desejos, expondo vulnerabilidades envolvidas por muita poesia e graciosidade. A sonoridade do álbum, que se diferencia do mainstream do mercado musical, é notável, com seus timbres ecléticos e períodos instrumentais extensos na maioria das faixas.
“Quando eu alçar o voo mais bonito da minha vida
Quem me chamará de amor, de gostosa, de querida?
Que vai me esperar em casa, polir a joia rara
Ser o pseudofruto, a pele do caju”
[Caju]
Liniker não fala apenas sobre suas aspirações, mas também sobre o próprio movimento de desejar. Em sua entrevista no programa Conversa com Bial, ela explica que Caju representa tudo aquilo que ela é para si mesma, mas nem sempre tem coragem de externar. Na expressão artística de um alter ego, a primeira mulher trans brasileira a ganhar um Grammy Latino expõe a ousadia e a paixão investidas em amar livremente a si mesma e aos outros; em impor limites, sonhar grande e almejar a felicidade e o amor correspondido.
“Deixa eu ficar na tua vida
Morar dentro da concha
Do teu abraço não quero largar
Que seja real além da conta
O que a gente precisa é aprender sonhar”
[Tudo]
Com um olhar cuidadoso sobre o processo de tornar-se negra, é possível encontrar beleza nas vicissitudes do caminhar. Caju, sinfônico e elegante, é trilha sonora do encontro com a ideia do amor como potência de criação e de existência. Liniker dá voz às nossas vozes ao resgatar a autenticidade que nos foi historicamente negada, e mesmo em meio às imposições de força e coragem, ela canta que também nos cabe ser vulneráveis, desejar, sentir e amar.
“Agora eu sei que meu amor é um pote de ouro
Tesouro raro, impossível não me amar
Não é coragem que precisa pra estar do meu lado
[…]
Corpo fechado evita quedas, e eu te falo mais
Já olhou pra tudo que eu botei a mão e fiz brilhar?”
[Popstar]