Preciso ser muito honesto desde o início, porque é isto o que sempre faço nas minhas abordagens críticas cinematográficas: não espere imparcialidade aqui. Primeiro, porque imparcialidade não existe, quando se trata de apreciação artística. Arte é subjetividade. Estou aqui, na melhor das hipóteses, para argumentativamente convencer você da qualidade deste filme, Vingança & Castigo. Ou da falta de qualidade dele.
Vamos aos argumentos, portanto: eu esperava por este filme há cerca de um ano, quando foi anunciado. Então, imagine a minha expectativa, já que além de ser uma pessoa que se agrada por abordagens estilizadas e contemporâneas de gêneros tradicionais do cinema, todas as informações sobre a grandiosidade representativa deste filme me enchiam a alma. Eis quais são as informações: Jeymes Samuel, diretor de cena que tem trabalhos realizados com Jay-Z que, olhe só!, é o produtor deste faroeste com super elenco negro — tem a maravilhosa Regina King (‘Watchmen’), Idris Elba (‘Esquadrão Suicida’, ‘The Wire’, ‘Luther’), Zazie Beetz (‘Coringa’, ‘Atlanta’, ‘Deadpool’), Lakeith Stanfield (‘Judas e o Messias Negro’, ‘Atlanta’), Jonathan Majors (‘Lovecraft Country’) e Delroy Lindo (‘Destacamento Blood‘), além de Edi Gathegi, Damon Wayans Jr, Demanda Wise, RJ Cycler, Danielle Deadwyler, Deon Cole e Michael Beach. Some isso aos acessos posteriores que tive ao teaser e trailer e pronto, estavam me entregando meu prato cheio de diversão: violência estilizada em trama de vingança protagonizada pelos astros negros do momento, com edição sincopada a uma trilha sonora incrível.
Quando pude, finalmente, assistir ao filme, percebi: o que me foi prometido, foi entregue. Vingança & Castigo, produção da Netflix, é um prazer sangrento. Um faroeste de vingança repleto de personagens memoráveis interpretados por atores talentosos, com cada cena e momento encenado por uma beleza voluptuosa e poder cinético, próprio de quem está há muito tempo envolvido em produções musicais, como é o caso de Jeymes Samuel. Ele é o diretor do curta Jay-Z: Legacy, e músico consultor de O Grande Gatsby, além de responsável pela trilha sonora de outros filmes.
Sobre a trama, espere muita eficiência narrativa e — se estiver disposto como eu estava, a embarcar neste espetáculo que me foi oferecido — feche um pouco os olhos para algumas incongruências típicas de filmes cujo apelo estético é o mais importante. Eu faço isso com vários filmes de Quentin Tarantino, por exemplo, inebriado que fico com uma enfermeira de tapa-olho andando vagarosamente sob a trilha sonora de um assovio ou extasiado vendo John Travolta de mullets e Samuel L. Jackson de cabelo black power escapando ilesos de uma saraivada de tiros. Há muitas sequências que não servem a muitos propósitos narrativos (e em alguns casos, na verdade, minam sequências anteriores), mas que, sem dúvida, foram projetadas unicamente para nos surpreender.
Porém, o que é claro, pra mim, é que foram escolhas muito conscientes.
Em busca da grandiosidade
A adoção da suspensão de descrença total em detrimento de belas sequências que colocarão o diretor em outro patamar no seu próximo filme. Isto porque Jeymes Samuel parece muito determinado a enfiar todas as ideias que puder na sua primeira obra — um problema comum e quase sempre perdoável para filmes de estreia. Você sente sua ansiedade em ser grandioso e épico a cada tomada. Você sente a minuciosidade com que ele deve ter pensado em toda a trilha sonora do filme (com artistas como Kid Cudi, CeeLo Green e Seal) e em como trabalhar momentos da edição em que cortes, zooms, trocas de planos estão perfeitamente sincronizados ao beat de algum som incrível que ele trouxe para tornar esta celebração negra ainda mais grandiosa.
Está tudo ali: desde a cena inicial, em que um homem misterioso chega na casa de um pregador e sua família e a trilha aumenta de forma repentina, na sede do diretor em nos apresentar sua escolha musical apropriada, mas que subentende que já sabemos quem são aquelas pessoas e o que está prestes a acontecer — aliás, isto é um problema que venho identificando em alguns filmes: pressuposições de trama, que parecem crer que, por termos visto tanto e tantas vezes seu trailer, já querem nos entregar fatos sem se dar conta de que precisamos de informações anteriores.
Mas ok. Porque esta lentidão e mistério que Samuel nos dá na cena inicial, é bem reconhecível dos filmes de faroeste. E, de certa forma, sabemos quem são aquelas pessoas (Michael Beach e DeWanda Wise em pequeno mas honroso tempo de tela) e o que está para acontecer. E a condução de toda a direção nos coloca no sentimento certo, porque nesta angustiante cena de abertura, nos preocupamos com esta família pois eles estão prestes a serem massacrados. É isso o que acontece com as famílias que recebem visitantes misteriosos e silenciosos nos faroestes.
Em busca de vingança
Só quem sobrevive desse massacre é uma criança, Nat Love, que cresce para se tornar um fora-da-lei que rouba ladrões de banco. Aquele menino, testemunha traumatizada do assassinato de seus pais, é marcado por uma cruz, riscada com faca em sua testa pelo assassino. Um pouco depois, conhecemos o adulto Nat (papel de Jonathan Majors), quando ele acabou de se vingar dos homens que cometeram aquele crime. Quem falta é exatamente aquele homem misterioso que o marcou na testa, Rufus Buck (Idris Elba), que supostamente está cumprindo uma sentença de prisão perpétua, mas logo é libertado por uma gangue liderada pela violentíssima Trudy Smith (a sempre maravilhosa Regina King) e o cavalheiro atirador Cherokee Bill (Lakeith Stanfield). Enquanto isso, a gangue de Nat roubou um carregamento de ouro que originalmente pertencia a Rufus, que precisa do dinheiro para administrar a cidade de Redwood City, um lugar que Rufus tenta vender como uma espécie de utopia negra independente, embora sob seu próprio controle brutal e ditatorial. Nat se junta a Bass Reeves (Delroy Lindo), o homem da lei que originalmente capturou Rufus, bem como a sua própria gangue, que inclui Mary Fields (Zazie Beetz), dona de um saloon e cantora, com envolvimento amoroso com Nat. Fechando a gangue, temos Danielle Deadwyler como Cuffee, corajosa segurança de Stagecoach que também se alia à missão, e Jim Beckwourth (RJ Cyler), um jovem atirador ansioso para provar sua velocidade superior com uma pistola.
Conhecedores da história ocidental, estejam avisados: como o próprio início do filme indica ( “Embora os eventos desta história sejam fictícios …” “Essas. Pessoas. Existiram.”), muitos dos principais personagens da história compartilham, realmente, os mesmos nomes de pessoas reais que viveram e morreram no Velho Oeste, incluindo Nat Love, Bass Reeves (também explorado na série Watchmen), Mary Fields (também conhecida como Stagecoach Mary) , Jim Beckwourth e Cherokee Bill. Porém, os eventos dos quais eles participam são, em sua maioria, um disparate inventado (como o que está sendo feito com a figura do abolicionista John Brown na ótima série do Prime Video, The Good Lord Bird). Tudo para reunir uma série de figuras históricas negras do Velho Oeste, amplamente ignoradas pelos livros de história e pelos principais criadores de mitos ocidentais: vai que, ao ver juntos todos esses personagens em um filme de ação, você possa ficar inspirado a procurá-los e aprender mais sobre seus feitos, na vida real. Vai que.
O fato é que Jeymes Samuel se jogou com tudo: ele co-escreveu, dirigiu e fez a trilha sonora do filme. E, mais do que isso, estudou as obras dos diretores em que se referencia, porém, entendendo o que eles faziam com a imagem e o som; então, ele se propõe a fazer um pouco mais, trazendo contemporaneidade rítmica e visual onde nomes como Sergio Leone não o fizeram, por exemplo. É importante destacar a primorosa direção de fotografia de Mihai Malaimare Jr também, nos entregando ótimas cenas como a visão do alvo de um atirador de elite ou a visão aérea de dois pistoleiros, com sombras muito longas enfrentando uma a outra em uma rua.
Com todas estas escolhas, Samuel consegue cadenciar Vingança & Castigo em principalmente dois grandes acontecimentos fílmicos: o mais evidente, que me seduziu imediatamente, em que todo o projeto parece uma brincadeira ou mesmo uma indulgência imagética em que o que importa é a sequência divertida e bem coreografada de violência musical, até o ponto em que, amarrando as pontas e mostrando maturidade para abraçar aspectos melodramáticos profundos, escondidos por baixo daquela camada de tiroteio e pó de areia, se torna um filme mais sério, uma tragédia familiar e quase mitológica sobre como a violência pode gerar mais violência. E violência em saloon ou nas brigas por ruas empoeiradas é diferente daquela que acontece para dilacerar uma família.
Faroeste negro
Em uma obra repleta de personagens negros, de um diretor negro, racismo e genocídio também apontam sua existência no universo deste filme, como quando um personagem negro revela uma cicatriz no pescoço indicando que sobreviveu a um linchamento. Com a devida licença fílmica, no entanto, o filme cria um ambiente fictício onde as pessoas negras, tradicionalmente excluídas deste gênero, podem ser donos de bares e boates e bancos, bem como administrar cidades prósperas, vagando pelas ruas com confiança em grupos armados, tal qual estamos acostumados a ver os pistoleiros brancos nestes filmes. Não há o temor por ser derrubado do cavalo a qualquer momento e sufocado até a morte por um “homem da lei”. Se isto for confuso para você, volte para o início do filme para reler os cartões iniciais, “Embora os eventos desta história sejam fictícios …”
O filme de estreia de Jeymes Samuel, é, sem dúvida, uma bem-vinda e maravilhosa continuidade das tradições dos black westerns que começaram com os filmes de Richard C. Kahn dos anos 1930, depois decolando nos anos 70 durante a Blaxploitation, com produções como Um por Deus, Outro pelo Diabo, de e com Sidney Poitier e Thomasine & Bushrod, de Gordon Parks Jr. O gênero só foi retomado na década de 90, com O Massacre de Rosewood, de John Singleton, de 1997, com Ving Rhames, Don Cheadle e Esther Rolle no elenco. Vingança & Castigo segue o mesmo caminho do clássico de Mario Van Peebles, Posse, um black western de 1993 estrelado por Blair Underwood, Tiny Lester e Pam Grier. Como Posse, Vingança & Castigo também concentra-se na história de um filho fora da lei em busca de vingança por seu pai pregador morto. E faz isto entregando um filme que é puro espetáculo, transformando movimento e som em fonte de absoluto prazer. Em uma época de filmes de ação cada vez mais desleixados, é um alívio ver uma obra destas nas mãos de um diretor que sabe, e principalmente, quer contar muito bem uma história através de uma câmera.