18.08.2024 Ícone da categoria

Virgínia Bicudo, mulher negra pioneira da psicanálise no Brasil, ganha filme

O novo filme 'Virgínia e Adelaide' explora o encontro transformador entre Virgínia Bicudo e Adelaide Koch, duas mulheres que inauguraram a psicanálise no Brasil.

Virgínia Bicudo, mulher negra pioneira da psicanálise no Brasil, ganha filme

Virgínia Leone Bicudo, nascida em 1910 na cidade de São Paulo, trilhou um caminho marcado por desafios e conquistas em uma sociedade profundamente desigual. Filha de um descendente de escravizados e de uma imigrante italiana, Virgínia cresceu em um ambiente onde o racismo e a discriminação eram parte da vida cotidiana. Contudo, foi sua determinação em compreender e combater essas injustiças que a levou a se tornar uma das figuras mais importantes na história da psicanálise no Brasil.

Virgínia Leone Bicudo ajudou a implementar a psicanálise no Brasil. Foto: Sociedade Brasileira de Sociologia

Formada inicialmente como socióloga, Bicudo ingressou no curso de Ciências Políticas e Sociais na Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) em 1936, em busca de respostas para o sofrimento humano que ela identificava em si mesma e na sociedade ao seu redor. Sua decisão de estudar sociologia foi motivada pela necessidade de entender as causas sociais do preconceito racial, um tema que se tornaria central em sua carreira. Sua tese de mestrado, “Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo,” defendida em 1945, foi pioneira ao abordar as questões raciais no Brasil, destacando a intersecção entre raça e desigualdade social.

Início na Psicanálise e contribuições acadêmicas

O encontro de Virgínia Bicudo com a psicanálise ocorreu no final da década de 1930, quando ela se tornou a primeira paciente da psicanalista alemã Adelaide Koch, que havia fugido da perseguição nazista para o Brasil. Esse encontro não só marcou o início de sua jornada na psicanálise, mas também a colocou em contato com importantes figuras da área, como Durval Marcondes, fundador da Sociedade Brasileira de Psicanálise. Em 1940, Virgínia assumiu a cadeira de psicanálise e higiene mental na ELSP, onde sua abordagem integrada ao contexto familiar e educacional foi fundamental para o desenvolvimento da disciplina no país.

Virgínia Leone Bicudo é a primeira da esquerda para a direita, na primeira fila, nessa foto dos alunos do Curso de Educadores Sanitários do Instituto de Higiene. Foto: Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise (SBPSP)

Apesar de suas contribuições, Bicudo enfrentou sérias resistências dentro da comunidade médica, especialmente por não possuir formação em medicina. Durante o I Congresso Latino-americano de Saúde Mental, em 1954, ela foi acusada de charlatanismo—a acusação quase a levou ao suicídio. Contudo, em vez de desistir, Virgínia continuou sua formação em psicanálise infantil em Londres, onde teve contato com alguns dos maiores nomes da psicanálise da época, incluindo Melanie Klein e Donald Winnicott. Ao retornar ao Brasil, introduziu as ideias kleinianas e contribuiu significativamente para a fundação da Sociedade de Psicanálise de Brasília.

Virgínia Bicudo no cinema: “Virgínia e Adelaide”

O filme “Virgínia e Adelaide,” dirigido por Yasmin Thayná e Jorge Furtado, retrata o encontro entre Virgínia Bicudo e Adelaide Koch, destacando a importância desse momento na história da psicanálise brasileira. A produção, que mescla ficção e elementos documentais, busca iluminar o papel dessas duas mulheres na consolidação da psicanálise no Brasil, com um foco particular na trajetória de Virgínia.

A narrativa do filme se concentra na relação entre as duas protagonistas, interpretadas por Gabriela Correa e Sophie Charlotte, e explora como esse encontro influenciou não apenas suas vidas pessoais, mas também o desenvolvimento de uma nova prática científica no Brasil. “Virgínia e Adelaide” faz jus ao legado de Virgínia Bicudo, mostrando sua luta contra o racismo e as barreiras institucionais, e como sua dedicação à psicanálise abriu portas para futuras gerações de profissionais.

O filme, que mescla ficção e elementos documentais, teve sua estreia mundial na 52ª edição do Festival de Gramado, encerrando o evento com uma sessão hors concours. O longa é uma coprodução da Casa de Cinema de Porto Alegre, Globo Filmes e GloboNews.



Co-direção com um dos maiores do cinema nacional

Jorge Furtado é uma figura central no cinema brasileiro, com uma carreira marcada por uma série de filmes que exploram temas sociais, culturais e políticos com uma combinação de sensibilidade e humor. Entre seus trabalhos mais notáveis estão “Ilha das Flores” (1989), um curta-metragem que se tornou um clássico pela crítica contundente sobre a desigualdade social, “O Homem que Copiava” (2003), uma comédia dramática que mistura romance e crime, e “Meu Tio Matou um Cara” (2004), que explora questões de moralidade e justiça. Os dois últimos filmes, além de “Saneamento Básico, o Filme” (2007), uma sátira sobre burocracia e cinema, são protagonizados por Lázaro Ramos. “O Mercado de Notícias” (2014), é um documentário que investiga a relação entre mídia e poder. Furtado também é conhecido por “Real Beleza” (2015), um drama que questiona os padrões estéticos na sociedade. Sua obra foi amplamente reconhecida com prêmios como o Urso de Prata no Festival de Berlim por “Ilha das Flores” e diversos Kikitos no Festival de Gramado, destacando-o como um dos cineastas mais premiados e influentes do Brasil.

Trajetória de Yasmin Thayná

Yasmin Thayná é uma diretora e roteirista que vem moldando o cenário do cinema brasileiro com sua visão poderosa e inovadora, tendo dirigido mais de 20 filmes, séries e clipes. Ela ganhou destaque ao dirigir o premiado curta “Kbela,” que levou o prêmio de Melhor Curta-Metragem pela Academia Africana de Cinema. Além disso, Yasmin dirigiu os curtas “Fartura” e “A Vida é Urgente,” obras que refletem sua habilidade em contar histórias que ressoam profundamente com o público. No mundo das séries, ela criou e dirigiu “Afrotranscendence” e “PretaLab,” projetos que celebram a cultura e a inovação negra. Yasmin também codirigiu as séries “Amar é Para os Fortes” e “Toda Família Tem,” explorando as complexidades das relações humanas

A cineasta Yasmin Thayná, co-diretora de “Virgínia e Adelaide”

Yasmin também apresenta um programa sobre cinema no Canal Futura, onde compartilha seu conhecimento como pesquisadora, professora e conferencista. Reconhecida pela revista Forbes como uma das 90 brasileiras abaixo dos 30 anos mais brilhantes em sua área, e pela Wired como uma das 50 pessoas que estão transformando a criatividade no Brasil, Yasmin continua a expandir seu impacto no audiovisual. “Virgínia e Adelaide” marca sua estreia na direção de um longa-metragem, solidificando sua posição como uma das vozes mais promissoras do cinema brasileiro.

O legado de Virgínia Bicudo

Virgínia Bicudo se afastou do trabalho clínico em 2000, após décadas de contribuições fundamentais para a psicanálise e para o entendimento das dinâmicas raciais no Brasil. Sua morte em 2003 marcou o fim de uma era, mas seu legado continua vivo. Bicudo foi pioneira em seu campo, não apenas como a primeira psicanalista brasileira, mas também como uma das primeiras a abordar o racismo como um problema estrutural a ser combatido através do conhecimento e da ciência.

Virgínia Bicudo foi homenageada pelo Doodle do Google em 22 de novembro de 2022.

No entanto, o reconhecimento de suas contribuições ainda é insuficiente. Sua dissertação de mestrado, por exemplo, só foi publicada em 2010, 65 anos após sua defesa, um reflexo do apagamento histórico que mulheres negras como Virgínia frequentemente enfrentam. O filme “Virgínia e Adelaide” surge, portanto, como uma oportunidade de reavaliar e celebrar a importância de Virgínia Bicudo na história da psicanálise e na luta contra o racismo no Brasil.

“Virgínia e Adelaide” é mais do que uma simples homenagem cinematográfica; é uma convocação à reflexão sobre as barreiras que ainda hoje persistem para as mulheres negras no Brasil e no mundo. A trajetória de Virgínia Bicudo, marcada por coragem, inovação e resiliência, serve como um poderoso lembrete da importância de reconhecer e valorizar as contribuições daqueles que, como ela, abriram caminho em campos dominados por preconceitos e limitações.

O pôster bordado a mão é um trabalho de Mitti Mendonça,
artista gaúcha residente de Porto Alegre.

O filme, ao trazer essa história à tona, não só preserva a memória de Virgínia Bicudo, mas também inspira novas gerações a continuar sua luta por igualdade e justiça. Em tempos onde a história é frequentemente distorcida ou esquecida, revisitar a vida de Virgínia Bicudo é um ato necessário e urgente.