No painel “A Economia Criativa a partir da Lente de Pessoas Pretas”, realizado no Festival Clube de Criação 2024, seis importantes lideranças negras se reuniram para discutir o impacto e os desafios da economia criativa sob a perspectiva de pessoas pretas. O debate foi mediado por Robson Rodriguez, diretor executivo da Influência Negra, e contou com a participação de Dom Filó (produtor cultural, jornalista, documentarista e criador do Cultne), Felipe Sá (curador de conteúdo, relações públicas e líder do grupo étnico-racial da Globo), Luiz Henrique Costa (diretor de criação do Influência Negra), Mari Santos (creative lead da Jubarte), e Spartakus Santiago (diretor de arte, apresentador e criador de conteúdo). A conversa, intensa e cheia de reflexões, trouxe à tona questões profundas sobre a sobrevivência, a representatividade e o papel transformador da criatividade negra no Brasil.
Logo no início, Robson Rodriguez destacou que a economia criativa preta não pode ser limitada ao conceito tradicional da indústria publicitária. Ele apontou que, quando falamos sobre criatividade nas comunidades negras, devemos incluir questões que transcendem a publicidade e que estão diretamente ligadas à sobrevivência, à política pública e aos acessos. “A gente tem uma tendência de tratar economia criativa como agência, publicidade, campanha pra Cannes. Falar em economia criativa preta precisa levar em conta outros sistemas que perpassam sobrevivência, política pública e acessos. O assunto ganha uma roupagem que é assustadora.”
Mari Santos, da Jubarte, reforçou essa visão, apontando que, apesar de avanços importantes, os desafios para a criatividade negra ainda são enormes, principalmente fora dos grandes centros urbanos. Ela ressaltou o poder disruptivo da tecnologia, que oferece a jovens de comunidades periféricas novas oportunidades de criação, mesmo com recursos limitados. “Pensar este lugar aqui de seis lideranças criativas, pretas, falando com vocês. Poxa… andamos pra caramba. Mas ao mesmo tempo em que parece que andamos, encontramos muita força contrária pra ser criativo. Quando saímos dos grandes centros, é quase revolucionário. Um menino com um celular em qualquer favela, se ele cria um game, se ele joga algo na rede… Isto é muito disruptivo. Pra quem segura a grana, pra quem dá o acesso.”
A conexão entre criatividade e desafios históricos enfrentados pela população negra também foi ressaltada por Spartakus Santiago, que enfatizou como a adversidade força a inovação e o pensamento criativo nas comunidades negras. Ele sublinhou que, apesar de serem os maiores criadores, os negros raramente recebem o reconhecimento e a recompensa por suas contribuições. “Pra mim, a criatividade está intrinsicamente associada ao desafio. E não há dúvida de que o povo mais desafiado é o povo preto. Fomos forçados a ser criativos desde a escravidão. Quando vamos pra música, todos os ritmos criativos são do povo preto. Somos os que mais criam, mas não os mais recompensados pela criação. Como podemos mudar isso?”
No entanto, a caminhada pela representatividade plena está longe de ser vencida. Spartakus trouxe à tona a questão da ascensão de movimentos reacionários que têm ameaçado as conquistas de grupos historicamente marginalizados, especialmente no campo da publicidade e comunicação. “Ao mesmo tempo em que conseguimos muitas conquistas, nunca nossas conquistas foram tão atacadas. Hoje ligamos a televisão e voltamos a ver as campanhas que víamos antes de George Floyd: tudo voltou a ter só gente branca, porque passou!”
Essa falta de continuidade no compromisso das marcas com a diversidade foi um dos pontos centrais do debate. Felipe Sá, da Globo, destacou a necessidade de um pacto entre audiência, marcas e conteúdo para garantir que a representatividade seja mantida, independentemente das tendências passageiras do mercado. “Há um pacto entre audiência, conteúdo e marcas — ou dinheiro. Não conseguimos colocar na tela se a audiência não compactuar e as marcas não chegarem.”
Dom Filó, criador do Cultne, trouxe uma visão crítica sobre como as agências e o mercado brasileiro ainda falham em abraçar a diversidade de maneira sistemática, apontando que é necessário construir um modelo de negócios mais inclusivo. Ele destacou a importância de parcerias estratégicas para mudar essa realidade e citou o exemplo dos Estados Unidos, onde marcas como a Jeep dedicam percentuais específicos de suas campanhas à diversidade. “O que falta neste mercado é ranquear o que acontece pro mercado norte-americano. Uma marca como Jeep, por exemplo, determina um percentual para a diversidade: com campanha própria, distinta. Nós não temos isso aqui. Vamos forçar o modelo de negócio. Mas cabe a nós, criativos negros, comprovar a nossa audiência, os nossos números.”
Robson Rodriguez finalizou a discussão com uma provocação: “Se estamos cansados de falar de representatividade, de pluralidade, qual o próximo passo?” A resposta, segundo o consenso dos participantes, passa por uma reparação histórica, pela valorização da criatividade negra e pelo fortalecimento das parcerias que já foram construídas. Como ressaltou Dom Filó, “O mercado tem culpa. O momento é de reparação. O lance todo está no modelo de negócio a ser criado. Cabe a nós provar, por A mais B, que vale a pena o investimento.”
O painel foi uma verdadeira aula sobre a força transformadora da criatividade preta e os obstáculos que ainda precisam ser enfrentados. Apesar das conquistas, é claro que a caminhada para uma economia criativa mais justa e inclusiva está longe de terminar. No entanto, como ficou evidente nas falas de cada participante, o potencial da criatividade periférica e negra é inesgotável, e o futuro dessa economia depende de sua valorização e reconhecimento.