Hawk: o criador de conteúdo que transforma o óbvio no inacreditável

Na contramão dos influenciadores que ostentam uma suposta vida “perfeita”, Hawk fortalece sua comunidade mostrando seu “cotidiano fantástico”.

Hawk: o criador de conteúdo que transforma o óbvio no inacreditável Hawk Andrade, criador de conteúdo que, ao longo dos seus 30 anos, se tornou especialista em converter o óbvio no inacreditável. Por: Gabriel Xavier @gbrxvr

Hawk é uma pessoa negra de família humilde, nascido em Ipiaú, uma pequena cidade do interior da Bahia. Na loteria da vida, ele ‘ganhou’ a artrogripose, o que o torna uma pessoa com deficiência. Este poderia ser um enredo para um trágico clichê, mas não é o suficiente para resumir a vida de Hawk Andrade, criador de conteúdo que, ao longo dos seus 30 anos, se tornou especialista em converter o óbvio no inacreditável. 

Parte da responsabilidade de quem somos está intrinsecamente relacionada ao ambiente em que crescemos, às pessoas que nos criaram e quem se relaciona conosco ao decorrer da vida. Se dependesse do seu núcleo familiar, Hawk nunca se sentiria inferiorizado por ser PCD. Naquele ambiente com sua mãe, avós e primo, ele era apenas parte da família. Mas da porta de casa para fora, o mundo era o que sempre foi e ainda é: hostil, especialmente com corpos dissidentes. 

“O rolê da deficiência começou a pesar mais na pré-adolescência e adolescência porque eu comecei a ter consciência do mundo, do que era ser deficiente e de como isso afetava a minha vida. (…) Eu não tenho nenhum problema em ser uma pessoa com deficiência, o problema é como o mundo me trata por ser PCD. Sair é ver que  o mundo não está preparado para mim e nem quer que eu esteja vivendo.” conta. 

O período da adolescência foi crítico para Hawk, ele não apenas sofreu bullying, como também violências físicas. Na tentativa de se proteger, ele passou a assumir uma postura mais agressiva. Ao sair na rua ou frequentar espaços comuns como restaurantes, tinha que lidar com olhares preconceituosos, para evitá-los passou a se enclausurar em casa. 

“Eu estava sofrendo com tudo na minha vida e odiava ser quem eu era porque era muito dolorido existir, sair de casa e viver. Eu precisava ser uma nova pessoa“, relembra.

Muito do que nos tornamos vem das nossas relações sociais. Mas também somos o que decidimos fazer do que estas relações fizeram de nós. Nesta mesma época, em que tudo estava insuportável, Hawk abandonou seu nome de batismo e com ele a personalidade retraída e atrofiada por todo um contexto de capacitismo e preconceito que o cercava.

“Eu precisava ser outra pessoa, porque aquela já estava no limite.” Foto:  Gabriel Xavier @gbxvr

A coisa mais importante é a perspectiva. Quando a gente não tem perspectiva de nada é muito complicado sair desse ponto porque se eu sair, eu vou sair para onde? E mesmo que eu saia de todas essas questões que me empurram para dentro o tempo todo, para onde eu vou? Porque eu não tenho perspectiva.” reflete.

Ao pensar sobre o que o tomava a perspectiva, Hawk identifica que as relações sociais criaram aquele contexto de desumanização.

“Eu precisava ser outra pessoa”

Eu comecei a entender que eu não era humano. Tipo, eu achava que eu era humano e aí eu comecei a perceber (na adolescência) que eu não era tão humano assim. No meu caso por questões sociais, pela atitude das outras pessoas e também pelo mundo externo.” afirma. 

Naquele momento ele se libertou, não apenas do seu antigo nome, mas também dos seus medos, de tudo que o enclausurava, atrofiava sua personalidade e reprimiam sua existência. 

“Eu precisava ser outra pessoa, porque aquela já estava no limite. Eu precisava tentar começar do zero. Eu queria estar na posição de quem faz coisas, vive experiências e fazer tudo que eu não conseguia fazer antes.” afirma.

Filho de pais separados, Hawk passou boa parte da adolescência sob os cuidados da sua mãe, Dona Andréa. Como qualquer adolescente, ele queria sair, ver o mundo, passar por experiências comuns da sua idade, porém tanto o mundo, quanto os cuidados de uma mãe religiosa, o restringiam. Até que aos 18 anos, Hawk se mudou para Palmas, no Tocantins, para morar com seu pai. 

“Eu saí da prisão que era morar com minha mãe, para morar com um cara que ia para festa comigo. Foi assim de um extremo ao outro. Ele cuidou de mim durante dois anos enquanto eu estava na faculdade. Ele provia e também era responsável, só que ele era leve.” relembra.

“Eu queria estar na posição de quem faz coisas, vive experiências e fazer tudo que eu não conseguia fazer antes.” Foto: Gabriel Xavier @gbxvr

A reaproximação com o pai, no início da fase adulta, poderia ser um desfecho tranquilo para o nosso criador de conteúdo,  não só pela leveza, mas também pela liberdade que seu pai lhe trazia. Foi com ele que Hawk aprendeu a dirigir, o que lhe trouxe maior mobilidade na sua rotina. 

“Eu precisava construir tudo de novo.”

Porém, este período também o ensinou uma dura lição. Sendo ele uma pessoa com deficiência, acostumada a ter os cuidados do seu pai, acabou sendo forçado a aprender a cuidar do mesmo por conta de um trágico acidente. 

“Em 2020 a gente sofreu um acidente de carro e ele acabou ficando tetraplégico. Então meu pai hoje em dia é PCD também.” relembra. 

A rotina que Hawk leva em sua vida adulta, ultrapassa muito do que o senso comum acredita que seja possível de ser realizado por uma pessoa com deficiência. Mas o acidente de seu pai o confrontou com limitações imutáveis.

Quem cuida de quem agora sabe? Como é que eu estou cuidando dessa pessoa, se eu não posso fazer de fato nada? O que eu podia fazer era estar ali, e gritar por enfermeiros. Se ele precisasse de alguma coisa, eu não poderia correr e buscar ou fazer algumas coisas, sabe? Mas a gente se fazia companhia. Meu papel nos três meses em que ele ficou internado foi basicamente ser o entretenimento dele, era o que dava para ser feito.” relembra o criador de conteúdo.

A proximidade entre pai e filho acabou sendo o alívio em meio a uma triste situação que os dava mais uma coisa em comum. 

“‘Caralho, você me ama muito, né? Você quer me imitar até isso!’ Foi a primeira coisa que eu falei quando eu entrei no quarto, ele estava sem se mover do pescoço para baixo. E aí ele deu muita risada e falou: ‘É muito doido estar acontecendo isso comigo agora porque eu sei o que é isso, porque eu cuidei de você quando você nasceu.’ Ele sabia o que era ser uma pessoa com deficiência antes de se tornar.” reflete.

Pouco tempo antes do acidente do seu pai, Hawk estava desmotivado a seguir trabalhando com produção de conteúdo para internet. E o que aconteceu, poderia tê-lo desanimado ainda mais, contudo o superpoder do nosso protagonista é subverter o óbvio. 

“Eu já estava procurando emprego, sabe? Indo para uma vida mais normal. E aí quando aconteceu o acidente eu fiquei: ‘Foda-se eu vou voltar com a internet que é o que eu quero fazer’ (…) A vida que eu tinha acabou naquele dia, eu precisava de uma nova urgente. Eu precisava construir tudo de novo.” conta. 

Neste impulso, Hawk retorna para a Bahia e entra na faculdade de rádio e TV, que era o que mais se aproximava dos conhecimentos que ele precisava para produzir para internet. E então começou a fazer conteúdos pelos quais é conhecido hoje. 

“Eu sinto que as pessoas esperam uma justificativa para soltar esse ódio que elas têm. Elas já têm isso dentro delas e despejariam isso em qualquer pessoa.” Foto: Gabriel Xavier @gbxvr

A internet era o único lugar onde eu era uma pessoa. (…) Foi o primeiro lugar onde eu consegui existir de fato. Desde que eu entendi que eu podia viver na internet, eu falei: ‘é isso que eu quero para minha vida!’” conta.

Desde 2010, Hawk produzia conteúdo para diferentes plataformas. Ele já foi responsável por blogs, páginas de humor no Facebook e canais do YouTube. E desde sempre o influenciador levava a criação como sua rotina de trabalho. Ainda durante a faculdade, ele montou o canal que viralizaria:

“O modelo do canal no começo era de um vlog que ficasse entre uma sitcom e o reality show, então ele tinha elementos do ‘polícia 24 horas’, mas era reality show dos anos 2000. A coisa da câmera na mão e de você ter que correr, então o áudio nem sempre tá bom. Foi uma escolha estética, mas também era o que dava pra ser feito com os recursos que a gente tinha.” explica.

Nessa época Hawk atuava atrás das câmeras, como diretor, editor e mente criativa dos projetos que contava com seu amigo Galego, que ganhou a simpatia do público no Youtube. Mas foi no Instagram e no Twitter que Hawk encontrou espaço para desenvolver sua persona de forma solo e independente. Desta forma ele desenvolveu sua própria autoestima e seu próprio público, que estava ali por interesse em quem ele era e o que ele vivia. 

Mas se só existisse amor e admiração não seria a internet. Hawk também passou por cancelamentos, o que o preocupou em relação ao seu trabalho, pois além dele, outras pessoas dependem deste serviço. E o fez experimentar o ódio das pessoas na internet, mas não de forma inédita: 

“Eu sinto que as pessoas esperam uma justificativa para soltar esse ódio que elas têm. Elas já têm isso dentro delas e despejariam isso em qualquer pessoa. Eu só fui o da vez. Então eu sinto que ser um corpo minoritário, dissidente, que está marginalizado, já me coloca no alvo. 

As pessoas já têm essa cultura do ódio, mas sabem que não podem fazer isso normalmente. Mas aí você ‘dá uma justificativa para ela’, e ela vai poder finalmente te odiar muito, com muito gosto “, afirma. 



Apesar destas experiências, Hawk segue seu propósito na internet: chegar em mais pessoas. E quando questionado sobre o que quer levar para seu público, a resposta é rápida:

“Vida. Eu denomino o meu conteúdo na categoria de ‘Cotidiano Fantástico’. É o que eu faço, mostro o cotidiano de uma forma fantástica. Eu sinto que quando as pessoas veem as minhas coisas elas ficam com vontade de fazer coisas. Seja comer coisas gostosas, viajar, abraçar a mãe… Não são coisas absurdas, é literalmente viver. A minha meta de trabalho é sempre deixar esse desejo de vida nas pessoas.” afirma. 

Em sua descrição biográfica, Hawk se autodenomina como “sobrevivente”, pois como a maioria das pessoas fora da internet, durante muito tempo ele existia no limiar da sobrevivência:

“A gente está sempre pensando: ‘como é que eu vou viver o próximo mês?’. Estamos sempre nesse modo de sobrevivência, só que tudo que eu faço e tudo que eu quero é para além disso. É para além desse status de sobrevivência, porque sobreviver não é o suficiente. Eu não quero  viver no próximo mês. Eu quero fazer coisas incríveis no próximo mês, eu quero escolher viver no próximo mês coisas que eu acredito. Eu quero estar além, eu quero estar no próximo ano. Eu quero estar vivo daqui a 5 anos. (…) Então, o atributo de sobrevivente veio para mim primeiro porque sinto que eu consigo sobreviver e a partir de estar vivo, o que já é muito difícil para pessoas como eu, eu consigo dar o próximo passo.”