O ano era 2020 e o Brasil atravessava um dos momentos mais incertos de sua história recente. Em meio à pandemia, Gabriely Beraldo, então com 17 anos, retomou um ofício aprendido com a avó e tias: trancar cabelos. O que começou como alternativa para complementar a renda em plena crise sanitária, se tornaria, em poucos anos, um dos salões mais potentes do país no cuidado com cabelos crespos: o Urbi Afro.
De atendimento domiciliar na região de Guaianases, na Zona Leste de São Paulo, a um estúdio estruturado que emprega atualmente 24 pessoas, Gabriely construiu uma trajetória marcada pela profissionalização e pela afirmação cultural. “Nunca foi muito claro que isso se tornaria um negócio. Mas eu sempre soube que nasci para ter uma história grandiosa”, afirma. A afirmação não é hipótese: é uma constatação respaldada por números. Em 2024, o Urbi Afro faturou R$ 700 mil e tem previsão de atingir R$ 1,5 milhão em 2025.
Mais do que um salão, o Urbi Afro se apresenta como um espaço de reconexão com as raízes afro-brasileiras. A experiência ali vai muito além do visual. Trançar, segundo Gabriely, é um ato de escuta, de energia e de acolhimento. “A cabeça é o ponto de conexão mais íntimo e profundo de uma pessoa. Minhas parceiras são instruídas a sempre pedir licença antes de tocar nela”, explica.
Para atender a uma demanda crescente e garantir um alto padrão técnico, Gabriely apostou na profissionalização da gestão. Em 2023, contou com a chegada de Renato Sousa, advogado e empreendedor de impacto social. Com ele, vieram ferramentas de gestão, processos estruturados e uma visão de expansão. “O Renato trouxe o olhar que faltava de empresa de verdade. Foi um divisor de águas aplicar princípios empresariais na Urbi”, diz.
O salão se diferencia também por sua inovação técnica. Além de box braids, tranças desenhadas, gypsy braids, laces e mega hair, o carro-chefe é o método knotless, uma técnica indolor e com execução até 50% mais rápida que a média de mercado. Com mais de 70 mil seguidores apenas no Instagram e uma média mensal de 32,1 mil visualizações nos stories, o Urbi Afro é hoje também uma potência de comunicação e influência na cultura afro.
O impacto vai além das redes. Das 22 trancistas parceiras, 10 conseguiram sair de programas de assistência social graças à renda gerada com o trabalho no estúdio. E Gabriely tem planos ousados: lançar um atendimento 360º para cabelos crespos, com cortes especializados, alongamentos com cabelos humanos, próteses capilares e serviços complementares, como manicure. Tudo isso mantendo a essência: valorizar, cuidar e empoderar.
No fim das contas, como ela mesma diz, o fundo do poço nunca foi tão escuro quanto o medo de mostrar seu trabalho ao mundo.
Confira a entrevista completa com Gabriely Beraldo:
O Urbi Afro nasceu durante a pandemia, a partir de um ofício que você aprendeu ainda criança com sua avó e tias. Em que momento você percebeu que aquilo que começou como uma renda extra poderia se tornar um empreendimento estruturado e com propósito claro?
Nunca foi muito claro que isso se tornaria um negócio e que impactaria vidas através de mim. É como a ideia de que o córtex pré-frontal se forma aos 25 anos e, a partir dessa formação, você começa a pensar e agir como um “adulto de fato” – uma completa ilusão. No mundo dos negócios percebo isso também: não existe um momento específico em que você entende, você apenas sente. Perceber e se posicionar foi o principal divisor de águas para o cenário em que eu estava entre atender em casa, ter minha primeira parceira e depois multiplicar em 5, 11 e agora 22 profissionais parceiras. Uma coisa eu tinha muito clara: nasci para ter uma história grandiosa e nunca me contentei com o pouco. A miséria e a extrema pobreza me fizeram enxergar que fundo do poço algum é tão ruim quanto expor ao mundo meu trabalho.
Desde o início, as tranças não foram apenas uma prestação de serviço, mas uma forma de expressão cultural e resgate de identidade. Como você enxerga o papel do Urbi Afro na preservação e valorização das tradições afro-brasileiras, especialmente em um setor que muitas vezes não reconhece essas raízes?
Nosso setor não reconhece a importância e a história feita com nossas próprias mãos, por estar focado em sobreviver. Entre viver um propósito e garantir comida na mesa, o desespero da fome bate primeiro. E o desespero é o que ‘ferra a estratégia’. Quando eu estava em fase de sobrevivência, não conseguia enxergar o poder ancestral que estava nas minhas mãos: criar caminhos na cabeça das pessoas, agora não mais para fugirem, mas para encontrarem a si mesmas. Trançar um cabelo é sentir toda expectativa, energia e intenção do cliente. A cabeça é o ponto de conexão mais íntimo e profundo de uma pessoa e é onde estamos mais sensíveis. Minhas parceiras são instruídas a sempre pedir licença antes de tocar na cabeça da pessoa e começar o atendimento.
Você costuma dizer que cada trança que sua equipe realiza carrega uma história. Como é, no dia a dia, manter esse compromisso com a ancestralidade enquanto comanda uma operação que cresce e se profissionaliza cada vez mais?
Entender as necessidades de cada profissional no 1:1 é fundamental para termos uma equipe de elite. A alta performance passa por esse processo de atenção. Às vezes o profissional falta por simplesmente não conseguir expressar o que está passando dentro de casa, e isso faz diferença na nossa gestão e afeta diretamente os nossos resultados para o cliente final. Atualmente todos são clientes da Urbi: nossos clientes internos são os profissionais e os externos são as clientes.
Ao longo desses anos, você saiu de um atendimento domiciliar para liderar uma equipe com mais de vinte profissionais, com projeção de dobrar esse número. Que aprendizados você destacaria na transição de uma atividade artesanal para a gestão de um negócio com metas de expansão e resultados expressivos?
Aqui trago uma analogia como um feijão. Quando você quer que ele cozinhe e coloca em uma panela, ele vai ficar pronto, porém vai demorar mais. Agora experimente colocá-lo em uma panela de pressão: ele cozinha muito mais rápido. A pressão inteligente é o que me fez chegar e entender os passos que dei. Tudo o que é novo nos gera medo, frustração e dor de estômago, mas entender que isso é um processo lento, como qualquer processo de aprendizagem, torna a jornada do empreendedorismo e o lidar com pessoas bem mais leve.
Em 2023, Renato Sousa se uniu ao projeto, trazendo uma visão estratégica e ampliando o olhar sobre a gestão. Quais foram as principais mudanças que essa parceria trouxe para a operação e como ela contribui para os planos de crescimento sustentável da empresa?
O Renato veio para a Urbi trazendo o olhar que faltava de empresa de “verdade”. Inventar a roda em um segmento que não segue nem o básico 1 de uma empresa minimamente estruturada não faz parte dessa visão. Princípios básicos da gestão e o 1:1 foram fundamentais para eu conseguir aplicar todo o conhecimento e bagagem que ele trouxe. Foi um divisor de águas desafiador aplicar gestão empresarial na Urbi, mas hoje consigo ver os frutos desse trabalho de formiguinha.