A literatura transformadora de Eliana Alves Cruz

A autora Eliana Alves Cruz leva à Flip 2024 reflexões sobre a história negra no Brasil através de sua obra poderosa e premiada.

A literatura transformadora de Eliana Alves Cruz

A carreira literária de Eliana Alves Cruz é marcada pela profundidade, pelo compromisso com o resgate da memória social afro-brasileira e pela incessante busca de questionamentos sobre a história do Brasil e do povo negro. Jornalista de formação, Eliana trouxe sua habilidade com as palavras para o mundo da literatura em 2015, com o aclamado romance Água de Barrela, vencedor do Prêmio Oliveira Silveira, e desde então se firmou como uma das vozes mais potentes da literatura contemporânea do Brasil.

Em 2024, sua participação na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) destaca sua relevância atual no cenário literário brasileiro. Além de ser convidada oficial, Eliana estará presente em uma intensa programação em parceria com diversas casas culturais, como a Casa de Histórias, em uma colaboração entre a Netflix, a revista Piauí e a Janela Livraria. Durante o evento, ela lançará uma plaquete com o conto Carta às cabeças brasileiras do futuro, reafirmando sua capacidade de usar a literatura para refletir sobre o passado e provocar reflexões urgentes para o futuro.

Resgate histórico

O compromisso de Eliana com a preservação da memória negra se reflete em cada uma de suas obras, especialmente em Água de Barrela e O crime do cais do Valongo. O primeiro, um romance baseado em três séculos de história real de sua própria família, é descrito pela antropóloga Ana Maria da Costa Souza como uma narrativa “baseada em personagens profundos e situações verossímeis”, revelando as camadas de dor, resistência e humanidade que atravessam as histórias das famílias negras brasileiras.

O segundo, O crime do cais do Valongo, é uma obra que mistura a investigação policial com o resgate histórico, levando o leitor das margens de Moçambique ao cais do Valongo, local que testemunhou a chegada de milhares de africanos escravizados ao Brasil. A obra nasceu da curiosidade da autora ao descobrir artefatos em escavações recentes no cais, um local de profunda dor e apagamento histórico. Eliana viu nesses objetos a oportunidade de narrar histórias ocultas de resistência e sofrimento que, de outra forma, estariam perdidas. Em entrevista ao Diplomatique, ela reflete: “Brasil, se olhe no espelho, enxergue quem você realmente é. A história e o conhecimento do povo negro são tesouros riquíssimos que precisam ser descobertos e aproveitados por toda a nação.”

Esse olhar cuidadoso para a história e a busca constante por justiça histórica colocam Eliana num patamar de destaque na literatura contemporânea. Suas obras são mais que narrativas ficcionais; são dispositivos de memória que convidam o leitor a revisitar um passado que continua a impactar o presente.

Imagem: Tomaz Silva (Agência Brasil)

Literatura como questionamento

Um dos traços mais marcantes de Eliana Alves Cruz é a maneira como ela estrutura sua literatura em torno de perguntas, como ela mesma afirma: “Todos os livros que escrevi têm grandes questionamentos por trás. Não tenho a pretensão de responder definitivamente a nada, mas fazer as perguntas certas, na minha opinião, é o segredo tanto para uma boa literatura quanto para um bom trabalho no jornalismo.” Essa abordagem questionadora é visível tanto nos romances históricos, como Nada digo de ti que em ti não veja (2020), que discute a hegemonia da Igreja Católica no Brasil colonial e a disseminação de fake news no século XVIII, quanto em suas narrativas contemporâneas, como Solitária (2022), que explora a força de trabalho feminina negra em contextos de opressão moderna.

A escolha por abordar temáticas complexas e dolorosas, como a exploração de mulheres negras em Solitária, revela a sensibilidade da autora ao refletir sobre o impacto duradouro da escravidão e das hierarquias raciais na sociedade brasileira atual. Ao mesmo tempo, suas obras evocam uma esperança cautelosa, baseada na generosidade e no afeto como ferramentas de resistência, como ela mesma coloca: “Acredito na generosidade como força de sobrevivência […] O afeto, o amor, o carinho… são todos sentimentos curativos dessa guerra eterna em que vivemos dentro e fora de nós.”

Conquistas

Eliana Alves Cruz tem colhido frutos significativos de sua trajetória literária, sendo reconhecida em importantes premiações. Seu livro de contos A vestida (2022) rendeu-lhe o prestigiado Prêmio Jabuti na categoria Conto, consolidando seu nome no panteão dos grandes escritores contemporâneos do Brasil. Esta obra foi reconhecida não apenas por sua qualidade literária, mas pela maneira como aborda temas sociais urgentes, aliando uma escrita ágil e poética a um olhar minucioso sobre a vida cotidiana.

Além disso, Eliana transita por outras áreas da criação artística, como o roteiro. Ela foi uma das roteiristas da série Anderson Spider Silva, da Paramount+, indicada ao Emmy Internacional. A série sobre o lendário lutador de MMA é uma prova do alcance e da versatilidade de sua escrita, capaz de atravessar fronteiras literárias e entrar no universo audiovisual com a mesma competência e sensibilidade.

A escritora também assumiu a temporada do programa Trilha de Letras, da TV Brasil. Desde novembro de 2023, ela conduz conversas com autores, editores, críticos e com quem faz parte do mundo do livro. O programa debate temas atuais por meio da literatura, sempre com convidados diferentes.

A autora durante a Bienal do Livro de 2022

O Futuro

A presença de Eliana Alves Cruz na Flip 2024 representa não apenas um momento de consagração de sua carreira, mas também a renovação de seu compromisso com a literatura afro-brasileira. Em um momento histórico de crescente reconhecimento da bibliodiversidade no Brasil, sua obra surge como um alicerce para o fortalecimento das vozes negras no país. A produção de plaquetes, em parceria com autores como Estevão Ribeiro, e a expansão de seu trabalho para o público infantojuvenil com Gênios da nossa gente reforçam sua dedicação a diversas frentes da escrita.



Em suas palavras, “estamos vivendo um momento único da literatura brasileira. Nunca antes tivemos uma bibliodiversidade como a que temos hoje.” No entanto, Eliana também alerta para os perigos desse momento, destacando o aumento do desejo de silenciamento por parte das elites econômicas. Ela vê a diversidade como algo ameaçador para essas elites, o que torna seu papel – e o de outros escritores e escritoras negras – ainda mais importante na luta pela igualdade e pelo reconhecimento.

Eliana Alves Cruz é, sem dúvida, uma das autoras mais proeminentes e comprometidas da atualidade. Sua obra não só questiona o presente e revisita o passado, mas também projeta um futuro no qual a memória e a identidade afro-brasileira são centrais para a construção de uma nação mais justa e consciente de sua história.

Conheça as obras