A potência da ancestralidade negra nas escolas de samba do Rio

Oito escolas do Grupo Especial trazem enredos de matriz africana.

A potência da ancestralidade negra nas escolas de samba do Rio Preparativos no barracão da Unidos da Tijuca | Foto: Tânia Rego / Agência Brasil

O Carnaval do Rio de Janeiro, a maior manifestação cultural popular do Brasil, chega em 2025 com um recado claro: a negritude segue sendo o pilar fundamental da festa. Oito das doze escolas de samba do Grupo Especial escolheram enredos que exaltam a matriz africana e a contribuição do povo negro para a identidade brasileira. Da religiosidade aos quilombos, das figuras históricas aos ícones da música, a Sapucaí será atravessada por narrativas que reafirmam a presença e a resistência da cultura afro-brasileira.

A Unidos da Tijuca mergulha na espiritualidade ao contar a história de Logunedé em “Logun-Edé – Santo Menino que Velho Respeita”, orixá que simboliza dualidade e equilíbrio. O Salgueiro apresenta “Corpo Fechado”, um enredo que explora as tradições de proteção espiritual da cultura afro-brasileira. A Viradouro exalta Malunguinho, líder quilombola e entidade espiritual do jurema, com “Malunguinho: O Mensageiro de Três Mundos”. Já a Unidos de Padre Miguel homenageia Iá Nassô, fundadora de um dos mais importantes terreiros de candomblé do Brasil, em “Egbé Iyá Nassô”.

A Mangueira volta suas atenções para a Pequena África com “À Flor da Terra – No Rio da Negritude Entre Dores e Paixões”, destacando a importância desse território para a história da população negra no país. A Beija-Flor reverencia Laíla, um dos maiores diretores de Carnaval da história, no enredo “Um coração que pulsa na Avenida”. A Portela celebra a obra e a trajetória de Milton Nascimento com “O Amor Preto Cura: O Canto de Milton Nascimento”, um artista cuja música carrega a ancestralidade africana. E a Grande Rio, que em anos recentes tem se destacado por temas afrorreligiosos, traz “Pororocas Parawaras: As Águas dos Meus Encantos nas Contas dos Curimbós”, com um olhar voltado para a influência dos povos originários e africanos na cultura popular brasileira.

Ao escolher esses enredos, as escolas de samba fazem mais do que apenas desfilar: elas reivindicam a cultura negra como parte central da formação do Brasil e reafirmam a Sapucaí como um território de resistência.

Essa presença marcante da cultura afro-brasileira no Carnaval não é novidade. O samba, o ritmo que move os desfiles, nasceu da fusão de influências africanas preservadas nos quilombos urbanos e nas festas das comunidades negras. Desde os primeiros desfiles, a presença negra foi constante, mas nem sempre reconhecida com a devida importância. A trajetória da valorização da cultura africana no Carnaval é uma história de resistência, enfrentamento e afirmação.

As raízes africanas do samba e os quilombos urbano

A relação entre a cultura africana e o Carnaval brasileiro começa muito antes das escolas de samba. O samba, a base musical da festa, tem suas raízes nos batuques e rituais trazidos pelos africanos escravizados. Após a Abolição, essas manifestações se mantiveram vivas em territórios negros como a Pequena África, região portuária do Rio de Janeiro que se tornou um reduto de resistência e preservação cultural.

Unidos de Padre Miguel vai contar a história da fundadora do primeiro terreiro de candomblé do Brasil (Foto: Tânia Rego / Agência Brasil)

Ali, personagens como Tia Ciata abriram suas casas para rodas de samba que misturavam percussão, dança e cantos oriundos das religiões de matriz africana. Foi nesse ambiente que o samba carioca começou a ganhar sua forma urbana, até que, em 1928, a fundação da primeira escola de samba, a Deixa Falar, estabeleceu um modelo que logo seria seguido por outras agremiações, como Mangueira e Portela. Desde então, o Carnaval se consolidou como uma expressão direta da identidade negra.

No entanto, essa presença não foi aceita sem resistência. Durante décadas, o samba e o Carnaval enfrentaram repressão e preconceito. No início do século XX, sambistas eram perseguidos pela polícia, e a cultura negra era constantemente marginalizada. Ainda assim, as escolas de samba cresceram, ganharam reconhecimento e se tornaram um dos maiores espetáculos do mundo.

O crescimento dos enredos afrocêntricos e seu impacto na identidade nacional

Apesar da predominância negra na criação do samba, os primeiros enredos das escolas não eram necessariamente afrocêntricos. Nos anos 1930 e 1940, os desfiles eram influenciados por um desejo de aceitação social, e muitos enredos exaltavam feitos históricos eurocêntricos. Isso começou a mudar nos anos 1960, quando o Salgueiro apresentou “Quilombo dos Palmares” (1960) e “Xica da Silva” (1963), colocando personagens negros como protagonistas na avenida.

Foi um ponto de virada. A partir dessas escolhas, outras escolas passaram a olhar para a cultura afro-brasileira com mais profundidade, trazendo figuras como Chico Rei, líder escravizado que conquistou sua liberdade e de seus companheiros, e Ilê Ayê, um dos primeiros enredos a celebrar a tradição nagô e as religiões de matriz africana.

Nos anos 1980, essa tendência se fortaleceu ainda mais. Em 1988, ano do centenário da Abolição da Escravidão, a Mangueira questionou a real liberdade dos negros no Brasil com o icônico samba-enredo “Cem Anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão?”. No mesmo ano, a Vila Isabel levou à avenida “Kizomba, Festa da Raça”, um desfile que exaltava a resistência negra e se tornou um marco no Carnaval brasileiro.

Nos anos seguintes, escolas como Beija-Flor, Império Serrano e Portela aprofundaram a abordagem afrocêntrica em seus enredos. Em 2018, a Paraíso do Tuiuti levou para a avenida um enredo que traçava um paralelo entre a escravidão e a precarização do trabalho moderno, incluindo um dos carros alegóricos mais impactantes da história recente, representando um “vampiro neoliberal”.

O Carnaval sempre serviu como uma plataforma para discutir questões sociais, e a valorização da cultura negra se tornou um dos pilares dessa expressão artística. Cada desfile que exalta a ancestralidade africana é um ato de resistência contra o apagamento histórico e um lembrete de que a cultura negra é a espinha dorsal da identidade brasileira.

A reafirmação da cultura afro-brasileira no Carnaval de 2025

O que acontece no Carnaval de 2025 é a continuidade desse movimento histórico. Ao eleger enredos que celebram orixás, quilombolas, líderes negros e artistas fundamentais para a identidade nacional, as escolas de samba estão reafirmando sua vocação original.

Não se trata apenas de entretenimento. A presença de temas afrocêntricos na Sapucaí tem um impacto profundo na forma como a sociedade brasileira enxerga sua própria história. Ao transformar a avenida em um espaço de exaltação da cultura negra, o Carnaval desafia narrativas eurocêntricas e reforça a importância da memória e da identidade afro-brasileira.



Os desfiles de 2025 mostram que, mais do que nunca, o Carnaval é um espaço de luta e resistência. As escolas de samba seguem cumprindo seu papel de guardiãs da cultura negra, contando histórias que foram silenciadas por séculos e garantindo que as futuras gerações tenham acesso à riqueza e à profundidade da herança africana no Brasil.

No maior espetáculo da Terra, a cultura negra segue sendo protagonista. E enquanto houver samba, haverá memória, orgulho e resistência.