Café Quilombo: resistência e ancestralidade

Como uma marca de café está resgatando a história negra e redefinindo o mercado brasileiro

Café Quilombo: resistência e ancestralidade

A história do café no Brasil e no mundo é profundamente marcada por laços de opressão, colonização e escravidão. No entanto, em meio a esse cenário, surgem iniciativas que resgatam a ancestralidade negra e transformam o ato de tomar café em um gesto de resistência e celebração cultural. O Café Quilombo, criado por Danilo Negrete, é uma dessas iniciativas. Mais do que uma marca, o Café Quilombo é uma homenagem viva à memória de figuras históricas da resistência negra, como Tereza de Benguela e Dandara dos Palmares, conectando o passado à experiência cotidiana do consumo de café.

O início de um sonho: de quitandeiro a Café Quilombo

O Café Quilombo nasceu em 2020, mas suas raízes começaram a se formar um ano antes, quando Danilo Negrete, especialista em gestão de negócios, lançou o e-commerce Quitandeiro, que comercializava produtos brasileiros, como cachaça, chocolate e, claro, café. A demanda pelo café chamou sua atenção, e logo ele percebeu o potencial de criar sua própria marca. Assim, em meio a um período de redescoberta pessoal e profissional, ele decidiu que o café seria o veículo para resgatar um elo histórico esquecido.

Negrete não queria apenas vender café, mas contar a história de um povo que foi marginalizado ao longo dos séculos. Ele explica: “Quando eu descobri esse elo perdido entre o café e a população negra, senti que esse era o meu desafio de vida. Usar o café para honrar a memória de nossos antepassados e educar as novas gerações sobre a história afro-brasileira.” Assim, o Café Quilombo nasceu com a missão de resgatar essa história, e os grãos robusta — muitas vezes marginalizados no mercado — tornaram-se o símbolo dessa resistência.

O café como veículo de memória e ancestralidade

O robusta, também conhecido como conilon, é o grão que define o Café Quilombo. Forte, resistente e de sabor marcante, ele reflete a própria trajetória do povo negro no Brasil e no mundo. Danilo escolheu esse grão, muitas vezes desprezado pelos especialistas de café, justamente por sua conexão com a história africana e pela sua capacidade de resistir às intempéries do mercado, assim como os quilombolas resistiram à opressão.

Danilo Lessa Negrete, do Café Quilombo: “Quando eu descobri esse elo perdido entre o café e a população negra, senti que esse era o meu desafio de vida” (Imagem: Divulgação)

“Eu me sentia mais conectado ancestralmente com o robusta,” conta Danilo. “Ele traduz o sentimento de um povo que, mesmo sendo colocado de lado, continua forte e resistente.” Essa escolha resgata a simbologia de resistência e força da cultura negra, onde o café deixa de ser apenas uma commodity para se tornar um veículo de reconexão com a ancestralidade.

Mulheres que inspiram: a força feminina por trás das linhas de café

O Café Quilombo também se destaca por suas embalagens, que trazem ilustrações de mulheres negras históricas que desempenharam papéis fundamentais na luta pela liberdade e resistência. Cada linha de café homenageia uma dessas figuras, e Danilo fez questão de criar uma relação simbólica entre a torra dos grãos e as personalidades dessas mulheres.

A linha Tereza de Benguela, por exemplo, é a mais intensa, com torra escura, remetendo à ferocidade e resistência da quilombola que liderou seu povo com bravura. A linha Dandara dos Palmares, com uma torra mais equilibrada, reflete o equilíbrio entre a doçura da maternidade e a dureza da luta. Já a linha Santa Anastácia, com grãos elegantes e complexos, homenageia a figura mística e curandeira que desafiou os padrões de beleza e comportamento de sua época.

“O nosso café Tereza precisava ser um café com uma torra bem escura e acentuada,” explica Danilo. “Uma bebida feroz, amarga, aveludada, assim como a vida de Tereza de Benguela.”

Sustentabilidade e responsabilidade social: um quilombo moderno

Desde o início, o Café Quilombo foi pensado como uma empresa comprometida com a sustentabilidade ambiental e o fortalecimento da economia negra. A marca adota práticas de baixo impacto ambiental, como a compensação de carbono através de projetos de reflorestamento e o uso de embalagens recicláveis.

Além disso, Danilo se preocupa em manter uma rede de fornecedores e parceiros negros, promovendo o conceito de Black Money, que incentiva o consumo e a circulação de riqueza dentro da própria comunidade. Ele afirma: “Nós não somos uma comunidade quilombola, mas exercemos a função de aquilombar ao criar uma rede de apoio e valorização da cultura negra.”

Essa combinação de responsabilidade social e ambiental fortalece a identidade do Café Quilombo como uma marca que não apenas vende café, mas também luta por um futuro mais justo e inclusivo.

O rosto das históricas líderes negras ilustra as embalagens do Café Quilombo (Imagem: Divulgação)

Avanços no varejo e sonhos para o futuro

A entrada do Café Quilombo nas grandes redes de varejo, como o Carrefour, marca um novo capítulo na trajetória da marca. Para Danilo, esse é um passo fundamental para ampliar o alcance da marca e, ao mesmo tempo, levar a história de luta e resistência para mais pessoas. “O maior desafio do varejo é o investimento em trade marketing, é uma operação grande, mas é necessária,” comenta.

Ele vê o futuro com ambição: além de expandir para outras redes varejistas e abrir uma loja física, ele planeja internacionalizar a marca e levar o Café Quilombo para além das fronteiras do Brasil. Seu sonho é que o café não apenas seja consumido, mas que também inspire novas gerações a conhecerem a história negra e a se orgulharem de sua ancestralidade.

Entrevista com Danilo Negrete, fundador do Café Quilombo

O Café Quilombo busca resgatar o elo histórico entre a cafeicultura e a população negra. Como você enxerga a importância desse resgate cultural e histórico na atualidade, tanto para a comunidade negra quanto para o mercado de café?

Eu vejo esse resgate como necessário e como atribuição minha. Sabe quando a vida lhe dá um desafio e é você quem deve realizá-lo, é assim que enxergo esse trabalho. Quando eu descobri esse elo perdido, a sensação que tive foi de que achei meu desafio de vida. Usar meus conhecimentos sobre a história brasileira, a história do café e a história do povo negro.

Para o mercado, eu sinto que estou incomodando, não para a maioria, mas para alguns, e vou continuar a incomodar. A gente está ocupando um espaço que antes não era ocupado e sim, isso incomoda, mas é necessário.

Ao homenagear figuras históricas como Tereza de Benguela e Dandara dos Palmares em suas linhas de café, você conecta o produto à ancestralidade negra. Qual é o papel das histórias dessas mulheres na construção da identidade e propósito do Café Quilombo?

Elas ocupam diversos papéis dentro do Quilombo, o principal é o fato de levarmos para mesa dos brasileiros o conhecimento dessas personagens negras da história do Brasil. Tivemos uma educação escolar colonial, onde as referências estão presas a uma cultura eurocêntrica. E usar a segunda bebida mais consumida no mundo como veículo de propagação da nossa cultura é esplêndido e educador.

A segunda, e não menos importante, é que fizemos uma licença poética para relacionar a torra desses cafés à personalidade de cada personagem. Vejamos, a quilombola Tereza é nosso café mais intenso, com a torra mais escura, e isso resulta numa bebida mais feroz, amarga, aveludada… e que está de certa forma relacionada à vida de Tereza de Benguela, uma mulher de fibra forte e resistente. Dandara é o mesmo, porém com um toque de doçura pela sua maternidade, que em algumas literaturas é contestada, mas nós exaltamos. Anastácia, por ser um café em grãos, traz o mistério e a misticidade que remetem aos trabalhos de curandeira de Santa Anastácia. E assim faremos sempre com nossas personagens e cafés.

A escolha do grão robusta para o Café Quilombo é um diferencial importante. Como você acredita que esse grão, historicamente marginalizado, reflete a resistência e a força da cultura negra?

Não tem como não relacionar, né? A escolha do grão não foi nada técnica. Repare… Quando comecei a trabalhar com cafés, trabalhava com os dois (arábica e robusta), Dandara e Anastácia eram arábicas e Tereza era robusta. No entanto, quando eu falava da Tereza para os “especialistas” de café, todos torciam o nariz (alguns até hoje torcem) e diziam: “esse grão é grão de blend” ou “isso é grão para fazer café tradicional.” As opiniões eram sempre reduzindo a qualidade do grão… mas eu gostava, eu tomava e gostava, me sentia de alguma forma mais conectado ancestralmente com ele.

Quando achei o fornecedor certo do robusta (por indicação de amigos), vi um potencial incrível, e a bebida, para mim, traduzia o sentimento de um povo. O sentimento de saber seu potencial, mas ser marginalizado. E quando a gente faz um cruzamento da história dessas mulheres com a bebida em si, dá o famoso ‘match’! Eu não poderia falar de mulheres tão fortes e trazer grãos tão sutis e suaves como os cafés arábicas.

O conceito de “Black Money” tem ganhado força nos últimos anos. Como o Café Quilombo tem contribuído para fortalecer a economia da comunidade negra e como você avalia o impacto de iniciativas como a sua nesse cenário?

Vejamos, a Café Quilombo não é uma comunidade quilombola, somos uma empresa que visa lucros. Mas mesmo não sendo uma comunidade, não deixamos de exercer a função de aquilombar. Quando falamos de Black Money, temos, evidentemente, o compromisso de ter uma rede de parceiros e colaboradores negros, e assim conseguimos fazer o dinheiro circular entre nós. Isso não significa que não temos parceiros não negros — temos, mas eles precisam ter uma prática de vida e de empresa antirracista.

A sustentabilidade é um pilar da marca Café Quilombo. Em um contexto global de crescente preocupação ambiental, como você concilia o compromisso com o meio ambiente com a valorização da cultura negra através da produção de café?

Sempre acreditei que falar de Quilombo é falar de resistência, sim, mas também é falar de meio ambiente, de conexão com a natureza. Temos práticas de redução de danos, até porque não tem como fazermos um produto de larga escala, um produto commoditie, sem gerar impacto ambiental — seria uma falácia dizer que não impactamos o meio ambiente. O que fazemos atualmente é devolver para a natureza o que consumimos e tratá-la com respeito. Isso inclui políticas de replantio de árvores, manejo de água e cuidado com os mananciais. Observamos muito isso.

A entrada do Café Quilombo no varejo, especialmente no Carrefour, marca uma nova fase para a empresa. Quais são os principais desafios e oportunidades que você vê ao expandir a presença do Café Quilombo nas grandes redes de varejo?

O maior desafio do varejo é o investimento em trade marketing, é deixar um pouco de lado o marketing digital de vendas. O trade é outra velocidade, é uma experiência de consumidor. Café é commodity, é gôndola, é consumo direto. O brasileiro, de modo geral, compra café quando passa no mercado, na compra do mês. O conhecimento sobre trade marketing eu sempre tive, mas o desafio é colocar isso em execução. É uma operação grande quando falamos de marcas de pequeno e médio porte, porém necessária.

A maior oportunidade, no nosso caso, é levar a cultura e a história de mulheres tão incríveis como as que trabalhamos. Eu mesmo já fiz degustações nas lojas, e ver o olhar de curiosidade das pessoas virando o verso da embalagem para saber sobre a vida da Tereza ou da Dandara é indescritível.

O café tem um papel central na economia global, e o Brasil é o maior exportador mundial. Como você vê o potencial do Café Quilombo em representar uma narrativa diferente no mercado internacional, conectando a origem africana do café à sua história negra?

Eu diria que seria a oportunidade de fazer uma correção de narrativa. A ideia que se tem do café fora do Brasil é muito europeia, e seria a oportunidade de unir forças entre o Brasil e a África para ocupar nosso espaço. O que posso adiantar é que estamos trabalhando para isso.

A pandemia afetou fortemente o setor empresarial, mas você persistiu com o Café Quilombo. Qual foi o maior aprendizado durante esse período e como isso influenciou a visão de futuro da marca?

Com relação à minha experiência como empresário na pandemia, foquei muito em estudos, em conhecer mais sobre a minha ancestralidade. Fui contra a maré, não investi em redes sociais ou vendas online, fui estudar mais ainda sobre minha ancestralidade. Passei por dificuldades, claro, mas tive a força da minha rede de apoio (clientes fiéis e amigos) para manter a empresa viva. Esses estudos me fizeram entender quais seriam os canais de distribuição da marca — defini que nosso principal canal seria o varejo. Através dele, alcançaríamos mais pessoas.

A marca Café Quilombo busca não apenas vender café, mas também contar uma história de luta e resistência. Como você acredita que os consumidores podem se engajar mais profundamente com essa narrativa e o que a diferencia de outras marcas no mercado?

A gente tem dois diferenciais, são eles:  1. Grão robusta 2. Uma marca negra na gondola. 

Agora o que faz o engajamento funcionar é que levamos a marca ao consumidor com um discurso mais artístico, mais cultural e que resgata a nossa ancestralidade. Sem tom ativista. Não que o ativismo não seja necessário, ele é necessário, mas o tom que escolhi foi falar da nossa cultura através da arte das embalagens e da propagação da nossa história. 



A trajetória do Café Quilombo começou com um investimento modesto, mas com grandes ambições. Olhando para o futuro, quais são suas principais metas para os próximos anos, e como você planeja expandir a visibilidade e o impacto da marca no Brasil e no mundo?

Ihhh… tem muita coisa que não posso dar spoiler… rsrs … Eu acabei de sair de um Shark Tank … mas posso garantir que o futuro é grandioso. O que me fez continuar foram as minhas ambições, eu sou um homem ambicioso e isso é meu combustível.

Mas posso adiantar que queremos estar em mais redes varejistas, sair do eixo São Paulo, ocupar outros canais de venda e trazer mais variedade de produtos com base em café, é isso que posso falar… rsrs.