Chegamos no mês março, repleto de reflexões sobre os avanços das pautas dos direitos das mulheres no mundo. No Brasil, um país onde a maioria das mulheres são negras, sempre precisamos nos questionar: de quais mulheres nós estamos falando no dia 8 de março? Essa é uma reflexão profunda, que não pode ser evitada.
Como uma mulher negra e CEO na indústria criativa e da publicidade, acredito que um dos maiores sintomas do machismo e do racismo no Brasil está nos próprios números: mais de 90% dos trabalhadores do setor doméstico, são trabalhadoras mulheres. Destas, mais de 60% são negras. Enquanto isso, apenas 1,8% das mulheres negras estão ocupando cargos de alta liderança, segundo pesquisa do Instituto Ethos.
O que esses números têm a nos dizer? Os resquícios de uma economia colonizadoradora, pautada por homens brancos na época da escravidão, ainda compõe a estrutura do mercado de trabalho brasileiro. Mulheres negras ainda são vistas como mão de obra do cuidado e da servidão e não da estratégia, do conhecimento e outras formas de intelectualidade. Uma vez li uma entrevista da acadêmica portuguesa Grada Kilomba, que dialoga com isso: “O racismo está se adaptando ao contemporâneo”. Como uma mulher que vive em Portugal, gosto muito da leitura racial de Grada Kilomba.
O fato das mulheres negras não serem CEO é uma questão que precisa ser trabalhada com profundidade. Sou uma entusiasta da representatividade na televisão, nas campanhas de publicidade, nas passarelas, entre outros espaços de destaque. Mas de nada adiantará, se nós, enquanto mulheres negras, não estivermos ocupando as cadeiras de tomada de decisão e acesso aos recursos financeiros.
Para me tornar uma mulher em cargo de liderança, eu passei por inúmeros desafios que vão se atualizando em todas as fases.
Inicialmente, o desafio era a falta de dinheiro para custear meus estudos, e a superação dos estigmas e preconceitos em todos os espaços que adentrava. O olhar torto, enviesado. Coisas que só nós sabemos e sentimos na pele. Quem ler O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, também pode degustar um pouco da sensação, com a escrita tão rica que ele oferece.
Com o tempo, conquistar espaços fez com que eu me alegrasse e me empoderasse, na mesma velocidade com a qual fui atropelada pela sensação de solidão. O pacto narcísico da branquitude, conceito criado pela socióloga Cida Bento, tem tudo a ver com esse cenário. Vi com meus próprios olhos, em um mercado tão cheio de QI (quem indica) que pessoas brancas tendem a se proteger e se favorecem mutuamente, o que dificulta o acesso de pessoas negras a espaços de poder e oportunidades. Onde estavam as minhas iguais? O que as mulheres negras que eu conheço lá da minha infância estavam fazendo? Onde chegaram? Tudo isso fomentou inseguranças constantes e uma baita síndrome da impostora.
Aquele não parecia ser o meu lugar. Porém, nunca duvidei que fosse. Foco, fé, família, alguns valores me ajudaram a seguir não só de pé, não só caminhando, mas correndo, literalmente. Mais de 10 quilômetros por dia. Além de trabalhar, cuido da minha saúde e da minha espiritualidade. Direitos básicos que foram e seguem sendo tão caros aos nossos, pessoas negras.
Como cuidar de si, se a sociedade te vê como alguém que só pode cuidar e servir ao outro?
Volto à Grada Kilomba: “Eu acho que o verdadeiro empoderamento de qualquer pessoa negra ou de qualquer pessoa de uma diáspora ou de uma comunidade marginalizada é ter a liberdade de ser humana”.
Nesse mês das mulheres, não desejo que as mulheres negras sejam super heroínas, quero que tenham acesso à prosperidade para uma vida confortável e bastante humana. Quero que durmam em paz sem serem corroídas pelas ansiedades do amanhã, que façam viagens, comam bem, possam sonhar e serem amadas.
E não podemos esquecer do compromisso coletivo. Em um momento em que grandes empresas estão desmantelando programas de equidade (como vimos recentemente com Google, Meta, Amazon e outras nos Estados Unidos) é ainda mais urgente que sigamos firmes na luta por equidade de gênero real. A retirada desses compromissos sinaliza um retrocesso perigoso, mas não podemos nos permitir recuar.
As empresas que realmente desejam inovar e prosperar precisam entender que equidade não é uma tendência passageira, mas uma necessidade estratégica. Criar e manter espaços de liderança para mulheres negras não é só uma questão de justiça, mas de inteligência de mercado e competitividade.
Porque, no fim das contas, equidade não é apenas sobre números ou políticas corporativas — é sobre garantir que todas nós possamos viver com dignidade, sonhar sem limites e sermos vistas em nossa plena humanidade. Feliz Dia da Mulher.