Mayara Ferrão: a reimaginação de corpos negros em diálogos entre tecnologia e afeto

Entre IA e ancestralidade, a soteropolitana tece novas memórias afetivas. Da Bahia ao MASP e a Arles, seu percurso aponta outras histórias possíveis.

Mayara Ferrão: a reimaginação de corpos negros em diálogos entre tecnologia e afeto Mayara Ferrão, nascida em 1993, Salvador, Bahia.

Durante a última edição da SP-Arte, a Casablack entrevistou Mayara Ferrão, nome em ascensão no cenário das artes visuais contemporâneas brasileiras e internacionais. Soteropolitana, nascida em Salvador em 1993, Ferrão une fotografia, cinema, pintura, ilustração e inteligência artificial para reposicionar corpos negros, indígenas e dissidentes em novos e poderosos contextos narrativos. Sua obra não apenas desafia as estruturas históricas de representação visual como abre caminhos especulativos e afetuosos, onde personagens tradicionalmente marginalizados assumem protagonismo pleno.

Formada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Mayara Ferrão é mais do que uma artista. É também empreendedora criativa e cofundadora do estúdio GANA, uma plataforma artística multidisciplinar que cruza linguagens visuais e sonoras em produções musicais, clipes e espetáculos. Sua trajetória, marcada pela inquietude estética e conceitual, encontrou na residência Pivô SSA, em 2024, um espaço de investigação profunda sobre arquivos coloniais através da inteligência artificial, culminando em trabalhos de grande impacto visual e crítico.

A Reescrita Decolonial das Imagens

Mayara Ferrão se distingue pelo uso criativo da tecnologia como ferramenta de reparação histórica. Seu recente trabalho, Álbum de Desesquecimentos, que integra o acervo permanente do MASP e foi destaque na exposição Histórias LGBTQIA+ (2024-2025), usa inteligência artificial para preencher lacunas nos arquivos coloniais brasileiros. Ao recriar cenas afetivas de casais lésbicos negros, Ferrão não apenas reconstrói histórias invisibilizadas, mas também questiona o próprio ato de ver e narrar através das imagens.

Essa série tornou-se tão emblemática que ganhou destaque na Revista ZUM (#27), com um dossiê exclusivo dedicado à artista. Esse reconhecimento não é casual: Ferrão está no centro de debates críticos sobre o futuro das artes visuais, particularmente quanto ao uso ético e estético de tecnologias emergentes como IA.

“Num contexto em que tanto se discute o viés racista dos sistemas de IA, com algoritmos codificados, em sua maioria, por homens brancos, Ferrão não está sozinha ao se apropriar de uma tecnologia que não foi pensada para e por pessoas negras.”, disse a professora de língua portuguesa, tradutora, revisora de textos e crítica literária, Fernanda Silva e Sousa, sobre este trabalho. “Mayara Ferrão parece nos dizer que é hora de descansar nossos pés e contemplar cenas de amor que nem sequer éramos capazes de imaginar.”, ela completou

Principais Obras e Reconhecimentos:

  • Álbum de Desesquecimentos (2024): Fotografias simuladas por IA, adquiridas pelo MASP.
  • Centro de Orixás (2021): Curta premiado com Melhor Direção na 5ª Mostra “Lugar de Mulher é no Cinema”.
  • O primeiro rastro foi água (2025): Exposição individual recente na Galeria Verve, São Paulo.
  • Verdade Tropical (desde 2018): Perfil anônimo no Instagram, origem de colaborações editoriais e de moda.

Diálogos com a Ancestralidade

Em obras como Centro de Orixás (2021), filme premiado na 5ª Mostra Lugar de Mulher é no Cinema, e na exposição O primeiro rastro foi água, Ferrão ancora sua pesquisa visual em símbolos afro-brasileiros e na força poética do mar de Salvador. Em O Primeiro Rastro Foi Água, a curadora e arquiteta de exposições de arte contemporânea, Marina Schiesari, observa que “Mayara Ferrão ativa visualidades que dialogam com os mistérios da cosmogonia iorubá, construindo uma ponte entre terra e Orum por meio da imagem. Suas obras preservam uma relação íntima com o espiritual sem reduzi-lo à explicação ou ao espetáculo.” Essas imagens e filmes trazem à tona memórias e espiritualidades ligadas aos orixás, promovendo um encontro sensível e urgente entre o contemporâneo e o ancestral.

Em entrevista ao site Badauê, Mayara Ferrão afirma: “Eu sou uma mente criativa em busca de ferramentas, linguagens e suportes disponíveis para me expressar e construir o imaginário que eu acredito. Uma mente muito analógica, inclusive, e acho que foi esse interesse pelo passado, pela memória, pelo arquivo, pela ancestralidade, que me fez utilizar ferramentas que costumam apontar pra imaginação de supostos futuros, para investigar e ficcionar arquivos e registros de momentos que existiram, mas que não foram documentados devido a escravidão.”

Além das artes visuais tradicionais, Ferrão também contribui para o cenário editorial ilustrando capas de livros fundamentais para o pensamento decolonial, como os de Lélia Gonzalez e Saidiya Hartman, ampliando ainda mais seu alcance e influência.

Exposições Individuais e Coletivas de Destaque:

  • “O primeiro rastro foi água”, Verve Galeria, São Paulo (2025)
  • Histórias LGBTQIA+, MASP, São Paulo (2024-2025)
  • Ancestral Futures, Rencontres d’Arles, França (2025)
  • Cuir Sou: Notas sobre afetividade, Verve, São Paulo (2024)
  • Ancestral: Afro-Américas, MAB-FAAP, São Paulo (2024)
  • Memórias Habitadas, SESC-RJ (2023)
  • Inomináveis Presenças, CCBB-RJ (2023)

Reconhecimento Internacional

Um dos ápices recentes de sua trajetória foi a seleção para o maior festival de fotografia do mundo, o Rencontres d’Arles, na França, onde participou da exposição coletiva Ancestral Futures. Sua presença em eventos dessa magnitude demonstra não apenas seu vigor artístico, mas também a relevância global de suas provocações visuais.



Ao conversar com a Casablack na SP-Arte, Ferrão enfatizou que sua missão é criar espaços imaginativos onde corpos e afetos marginalizados possam existir em plenitude e beleza, livres das limitações impostas pelas narrativas dominantes. Em seu percurso, os diálogos entre passado, presente e futuro são uma constante, e sua arte se estabelece firmemente como um farol que aponta novos caminhos para representações plurais e genuinamente inclusivas.